São Paulo pode se tornar um novo front da polarização

Pretende-se que a disputa pela prefeitura de São Paulo assuma a feição de um terceiro turno entre Lula e Bolsonaro. Já na largada o próprio presidente da República empenhou-se em confiná-la a uma luta do bem contra o mal, dando ares de uma “Frente Ampla” à chapa Guilherme Boulos/Marta Suplicy. É um exagero de retórica de Lula, com o objetivo de perpetuar a polarização calcificada, marca registrada da política brasileira pós 2018. Em nada a chapa lembra a aliança Lula/Alckmin da última disputa presidencial.

Se é para traçar algum paralelo, a dobradinha Boulos/Marta está mais para uma “frente popular” dos tempos em que a esquerda marchava com uma chapa puro-sangue. Essa fórmula é dos tempos em que o PT engatinhava e se recusava a fazer política em nome dos seus belos princípios. A rigor é uma frente de parte da esquerda, uma vez que, salvo chuva, tempestade e trovoada, o PSB se mantém firme e forte na candidatura de Tabata Amaral.

Nesse particular, a frente que deu a vitória a Lula se estreitou. Tudo marcha para que Lula e seu vice Alckmin estejam em palanques opostos na disputa pela principal prefeitura do país.

Em certo sentido, a batalha eleitoral na capital paulista sempre teve um componente nacional, mas este ano o fator nacional poderá preponderar pela ação dos dois principais contendores da política nacional interessados no engessamento da política nacional.

Verifica-se no terreno da política a confirmação da terceira lei de Newton, segundo a qual toda ação provoca uma reação de igual intensidade e direção, porém em sentido contrário. Ao perceber os movimentos de Lula, o governador paulista, Tarcísio de Freitas, procurou convencer Bolsonaro de que a candidatura de um bolsonarista de raiz à prefeitura paulistana o condenaria ao isolamento. Serviria, no máximo, para marcar posição.

Assim, a estratégia adotada pelo governador e pelo prefeito de São Paulo, que disputará a reeleição, foi a de fazer Lula experimentar do próprio veneno, articulando um palanque de Ricardo Nunes bem mais amplo do que o da dobradinha Boulos/Marta. Dessa maneira nasceu a “frente ampla contra o extremismo”, para usar um termo do governador Tarcísio. Deve incomodar ao presidente da República o fato de boa parte dos partidos de sua base de sustentação estar no palanque de Ricardo Nunes, em vez de subir no de Boulos.

Sem perceber Lula pode cair na própria armadilha que montou. Com um agravante. Ao nacionalizar a eleição de São Paulo, assume o risco de ser responsabilizado por uma eventual derrota da candidatura que patrocinou. Ainda mais por que foi o ártifice para o retorno de Marta Suplicy ao ninho petista. Até outro dia, Marta participava da gestão Ricardo Nunes, como sua secretária para Relações Internacionais, a quem jurava fidelidade e se dizia amiga do peito.

Ricardo Nunes não é nenhum bolsonarista de raiz, longe disso. Seu partido, o MDB, participa do governo Lula, ocupando três ministérios. Outros partidos compromissados com o palanque do atual prefeito também ocupam ministérios importantes. Basta citar o PSD de Gilberto Kassab.

Lula assumiu o risco de desorganizar seu próprio governo, caso sua estratégia dê com os burros n’água. Derrotas costumam deixar ressentimentos que não se curam com a razão.

Se não é um bolsonarista de carteirinha, é fato inconteste que a arte da sobrevivência jogou Nunes para o colo de Bolsonaro. O vice de sua chapa será quem Jair Bolsonaro escolher. Esse é o preço a ser pago para ter os votos do eleitorado cativo do ex-presidente. Até recentemente, esses votos iam para o PSDB, sem fazer muitas concessões programáticas. Mas isso ficou para trás.

Em tempos de polarização de extremos a primeira vítima é o centro. Em certo sentido esse fenômeno já se manifestou nas duas últimas disputas presidenciais. Alckmin e Marina fracassaram em 2018. A despeito de ter feito uma boa campanha, Simone Tebet teve o mesmo destino na disputa presidencial de 2022. Essa espada paira sobre a cabeça de Tabata Amaral, uma parlamentar de mente arejada e uma das grandes promessas da nova geração de políticos. Mas como encontrar espaço em uma eleição polarizada já na largada?

É como se o centro democrático estivesse condenado ao desaparecimento, nada mais lhe restando do que a adesão a uma das duas lideranças carismáticas e populistas sobreviventes ao amergedon da política. A síndrome do PSDB ronda suas cabeças. Desde 2004, estabeleceu-se a disputa entre os tucanos e o Partido dos Trabalhadores, que se revezaram no comando da principal prefeitura do país.

Em 2016 João Doria derrotou Fernando Haddad já no primeiro turno. Em 2020 Bruno Covas derrotou, no segundo turno, Guilherme Boulos por uma vantagem avassaladora. Hoje o PSDB tem peso irrelevante nas eleições, dilacerado entre três opções: lançar candidatura própria, apoiar Ricardo Nunes ou ainda Tabata Amaral.

Em uma guerra, costuma-se dizer que a primeira vítima é a verdade. Em uma eleição municipal nacionalizada sofrem os eleitores.

Eleição municipal é, por excelência, o momento de debater as questões locais, de se conhecer as propostas de cada candidato para a cidade.

São Paulo pode pagar um preço alto por ser alçada, à sua revelia, à condição de novo front principal da polarização.

De olho gordo na Vale

Por Hubert Alquéres

Lula e a esquerda nacional desenvolvimentista jamais engoliram a privatização da Vale, uma das maiores mineradoras do mundo e maior empresa privada brasileira. Seu valor de mercado só é inferior ao da Petrobras. A Vale é um exemplo de privatização bem sucedida, assim como a do setor de telecomunicações e a da Embraer. Seus números são insofismáveis: em 1998, primeiro ano após sua privatização, seu lucro líquido era de apenas 750 milhões de reais. Dez anos depois, ele passou a ser superior a 21 bilhões de reais.

O país também lucrou, e muito, com a privatização da Vale. Quando ainda era uma empresa estatal, em 1997, pagou de impostos ao governo 247 milhões de reais. Em 2008 pagou R$ 2,86 bilhões. Gerou, ainda, seis vezes mais empregos do que quando era estatal: em 1997 tinha 10 mil empregados, em 2009 eram 60 mil empregados. Em 2021 a empresa já contava com 149 mil funcionários e seu lucro no ano anterior foi de mais de R$ 26 bilhões!

A Vale, ao ser privatizada tornou-se uma empresa mais eficiente, investiu mais, gerou mais emprego e pagou mais impostos ao governo. Seu sucesso foi de tal ordem que apesar de suas tentativas de interferir nos destinos da Vale, Lula, nos seus dois primeiros governos, teve juízo para não reestatizar a empresa. Aliás, nenhum governo do PT chegou a esse ponto.

Quando se observa os resultados ao longo de 25 anos e se olha para os tempos da ineficiência estatal, chega-se à conclusão de que eram risíveis os argumentos de quem se opôs à privatização. À época, formou-se uma santa aliança entre juristas, sindicalistas, petistas e partidos da esquerda jurássica para fazer a roda da história girar para trás. Leonel Brizola bradava que a privatização era um plano macabro do “polvo imperialista”, interessado em sugar as riquezas naturais do país e espoliar os brasileiros. Lula engrossava o mesmo coro.

Se não teve forças para reverter o processo de privatização, Lula jamais desistiu do plano de ingerência política nos rumos da mineradora com vistas a transformá-la em uma extensão do seu projeto nacional-desenvolvimentista. Desde 2006 sua artilharia mira a Vale, acusando-a de, após sua privatização, priorizar o lucro, relegando a segundo plano a geração de empregos e investimentos no país.

É uma acusação sem pé nem cabeça, como comprovam os números, utilizada em 2009 para derrubar o presidente da Vale, Roger Agnelli, defenestrado do comando da mineradora dois anos depois. Adivinhem de onde veio a pressão para a degola de Agnelli. Da presidente Dilma e de seu ministro da Fazenda Guido Mantega.

Aqui o importante não é o fato, mas a narrativa construída. E Lula é especialista em criar versões sem a menor conexão com a realidade. Vide agora sua justificativa para tirar do armário o esqueleto da refinaria Abreu e Lima, outro devaneio de sua concepção do Estado protecionista e indutor da economia. Essa visão tinha lá o seu sentido nos anos 50/60, mas é anacrônica em um mundo onde quem faz a diferença são a inovação e a integração competitiva nas cadeias produtivas globais.

Os olhos gordos de Lula voltam-se novamente para a Vale, com o objetivo de fazer da mineradora um puxadinho do programa reciclado chamado PAC. Esse é o sentido do seu plano para fazer Guido Mantega o próximo presidente da empresa. Se de todo não for possível, se dará por satisfeito se seu ex-ministro se tornar membro do Conselho de Administração. Caso Lula obtenha êxito em seu plano, o ex-ministro da Fazenda será o “comissário do povo” na Vale com a missão de enquadrá-la nos desejos do governo.

Lula julga Guido Mantega um injustiçado, apesar de, como pai da “nova matriz econômica” ter sido responsável pela brutal recessão do governo de Dilma Roussef. Para reparar a “injustiça”, Lula quer dar uma prebenda a Mantega de, no mínimo, 130 mil reais mensais, remuneração de um conselheiro da Vale.

Não estamos diante de um caso isolado. Lula tenta reverter a privatização da Eletrobras e afrouxar os critérios de governança da Petrobras, beneficiário que foi da liminar concedida pelo então ministro do STF Ricardo Lewandowski, suspendendo a Lei das estatais para permitir o loteamento das estatais entre os partidos da base aliada. Coincidentemente, Lewandowski, velho amigo de Lula, é seu novo ministro da Justiça. Uma mão lava a outra.

Os olhos gordos de Lula estão custando caro ao país. Seu intervencionismo espanta a atração de investimentos por gerar insegurança jurídica. Quem vai querer investir num país onde a livre concorrência e o lucro são considerados ilegítimos, se não se subordinarem aos planos governamentais?

Sintomaticamente, em 2023 houve uma queda de 40% no investimento direto estrangeiro, na comparação com o ano anterior. Tem mais: pela primeira vez, em uma década, o Brasil não aparece entre os dez países considerados estratégicos para investimentos, pelo empresariado mundial. Isso não é obra do acaso.

O destino da mineradora será decidido na reunião de seu Conselho de Administração, marcada para 31 de janeiro, quando definirá se renovará, ou não, o mandato de seu atual presidente, Eduardo Bartolomeo. Na hipótese de escolha de um novo presidente até abril, a porteira estará aberta para Lula redobrar a pressão para emplacar Guido Mantega.

A Vale é hoje uma empresa com um sistema de governança sofisticado e de acionistas pulverizados, no qual não existe mais o domínio do bloco formado pelo fundo de pensão do Banco do Brasil, Previ e o BNDES. Mas quem tem a caneta na mão, no caso Lula, não pode tudo, mais pode muito. Até mesmo enfiar goela abaixo da mineradora o nome de Mantega.

A Vale é hoje motivo de orgulho dos brasileiros. Está presente em 14 estados do país e nos cinco continentes. Tornou-se em uma multinacional plenamente integrada na cadeia produtiva global, graças à privatização. Pena que o PSDB, partido que quando foi governo concretizou um ousado programa de privatizações, não tenha sabido defender o seu legado.

O Brasil sai atrás

O país não pode se dar ao luxo de perder as oportunidades abertas com a reorganização das cadeias globais

Por Hubert Alquéres

As duas palavras do momento na economia mundial são nearshoring e friendshoring. Elas ganharam visibilidade em 2023 e dizem respeito à remodelagem das cadeias produtivas, em decorrência de fatores geopolíticos, principalmente do conflito entre Estados Unidos e a China.

Empresas americanas, e em escala menor europeias, estão saindo da China para se instalar em países vizinhos (nearshoring) ou para nações consideradas amigas pelos americanos, o friendshoring.

O fenômeno já provocou uma grande alteração nas relações comerciais do mundo. Em 2023 o México desbancou a China como principal país exportador para os Estados Unidos.

O nearshoring refere-se à transferência de atividades de negócios para países próximos geograficamente, geralmente dentro da mesma região ou continente. A ideia por trás do nearshoring é aproveitar os benefícios de custo e proximidade cultural, reduzindo os desafios associados à distância física e à diferença de fusos horários. Essa abordagem pode ajudar a reduzir custos logísticos, melhorar o tempo de resposta e facilitar a colaboração.

O friendshoring é fundamental porque se procura operar em países com os quais os Estados Unidos tenham relações estáveis e de amizade. A Índia, por exemplo, se beneficia de ter estreitado os laços com os americanos.

As duas estratégias de realocação têm também por objetivo diminuir vulnerabilidades que se manifestaram tanto na pandemia como na guerra na Ucrânia. A dependência excessiva de insumos estratégicos na área da saúde, de fertilizantes e de semicondutores, entre outros, se transformou em uma questão de soberania nacional.

Há, portanto, uma combinação entre fatores econômicos, como ganhos de redução de custos, com fatores geopolíticos a impulsionar a reorganização das cadeias produtivas globais.

Nessa corrida, há nações que saíram no pelotão de frente e países que estão comendo poeira. O México se beneficiou de sua posição geográfica privilegiada de ser vizinho aos Estados Unidos. Mas não apenas por isso. Favoreceu-se de acordos de livre comércio e de ter construído toda uma estrutura produtiva e logística voltada para o mercado americano. Nesse sentido, torna-se difícil competir em condições de igualdade com os mexicanos, sem dúvida o principal beneficiário da reorganização das cadeias produtivas globais.

Isso não quer dizer que não haja espaço para outros países. Mesmo nações não tão próximas dos Estados Unidos têm conseguido ganhos com a nova onda. A Índia, o Vietnã, a Indonésia e o Japão estão tirando partido dessa nova tendência, como vem acontecendo na “guerra dos semicondutores”.

Empresas americanas e europeias estão se instalando nos três países dado serem próximos do mercado da segunda potência econômica do mundo, a China.  Os chineses, por sua vez, procuram instalar indústrias em países próximos dos Estados Unidos. Isso é visível na cadeia produtiva de carros elétricos.

O México não é o único beneficiário da América Latina. Em escala menor, a Colômbia e Costa Rica estão tirando partido do nearshoring. O Brasil poderia também se beneficiar das mudanças da nova ordem econômica mundial, mas queimou a largada. Em relação ao mercado americano, as exportações brasileiras sofreram decréscimo e fomos ultrapassados por Cingapura na participação no mercado dos Estados Unidos.

Corremos riscos de perder, mais uma vez, o bonde da história, apesar de algumas vantagens comparativas, como a possibilidade de consolidar posição decisiva para o desenvolvimento sustentável, a segurança alimentar e a transição energética globais.

O greenshoring é parte dessa nova modelagem. Teoricamente, temos todas as condições de participar da cadeia verde, com potencial para ser um relevante produtor mundial de energia renovável e limpa, gerada a custos baixos. Além disso, somos produtores de materiais estratégicos, como o lítio, tão necessário para as baterias.

Poderíamos ainda nos beneficiar de nossa posição geográfica estratégica, relativamente próxima dos Estados Unidos. Em especial essa pode ser a saída para a Amazônia, na qual já existe um arranjo institucional e um parque instalado na Zona Franca de Manaus. 

A transição energética abre uma gama de possibilidades para o Brasil ser um player importante na nova ordem econômica mundial e atrair empresas americanas e mesmo chinesas que teriam vantagens comparativas ao se instalarem por aqui. Poderíamos ser a porta de entrada para o acesso de empresas chinesas ao cobiçado mercado americano. De certa maneira, a indústria de carros híbridos e elétricos que os chineses estão implantando no Brasil tem esse objetivo.

Conspiram contra nossas potencialidades os tradicionais gargalos da economia brasileira, como a baixa produtividade da nossa mão de obra, decorrente dos problemas sobejamente conhecidos do sistema educacional. Temos ainda uma economia fechada, de poucos acordos de livre-comércio. O ambiente de negócios no Brasil é complexo e fator impeditivo para atração de novos investimentos externos, assim como o custo logístico restringe a concretização de novos negócios.

O conceito de nação amiga é fundamental para tirarmos proveito dessa remodelagem das cadeias produtivas globais. Somos um país identificado com os valores do mundo ocidental. A política externa, para o bem ou para o mal, terá peso decisivo no papel que o Brasil irá jogar. Não tomar partido na guerra fria entre a China e os Estados Unidos é fundamental para o sucesso de uma política externa pragmática e responsável, capaz de contribuir para sermos um player dessa nova ordem.

O inverso também é verdadeiro. Uma política externa ditada por viés ideológico, contaminada de um antiamericanismo pueril é o caminho mais rápido para desperdiçarmos, mais uma vez, uma oportunidade que a história nos oferece.

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Hubert Alquéres é presidente da Academia Paulista de Educação e vice-presidente da Câmara Brasileira do Livro. Foi presidente do Conselho Estadual de Educação e Secretário Estadual de Educação em São Paulo.

Fim da lua de mel

Camilo Santana e Izolda Cela assumiram o comando do Ministério da Educação em meio a enormes expectativas, quando chegavam ao fim os quatro anos de prioridades distorcidas pela visão ideológica do bolsonarismo. Neste período, também ocorreu uma alta rotatividade em cargos estratégicos da pasta, com políticas públicas erráticas. E vieram à tona denúncias de verbas sendo desviadas para pastores evangélicos.

Some-se a este quadro a pandemia de Covid-19, que trouxe enormes prejuízos para o aprendizado dos estudantes sem que o Ministério tomasse providências para que o problema fosse minimizado.

Em janeiro de 2023, finalmente assumia a pasta uma equipe com clareza dos desafios e alinhada com prioridades para retirar o ensino público da estagnação e elevar sua qualidade ao patamar dos países desenvolvidos. Iniciou-se uma lua de mel entre a nova gestão do MEC, educadores e gestores.

Não era pouco saber que o debate sobre a educação deixaria de se pautar pela irracionalidade. O país não perderia mais tempo com soluções pontuais, como o homeschooling (ensino domiciliar) e nem vazias, como a Escola Sem Partido. Também não se veria a implementação enviesada de projetos como a escola cívico-militar e a caça às bruxas nas escolas e universidades. A educação voltaria ao seu eixo normal, deixando de ser palco de uma guerra cultural anacrônica e sem sentido, que se estabeleceu no governo de Jair Bolsonaro.

A posse de Camilo e Izolda arejou o ambiente, despertando otimismo. Havia consenso quanto à qualificação do Ministro e da sua Secretaria Executiva para liderar um novo pacto educacional. Eles nunca foram estranhos no ninho, ao contrário, têm experiência como ex-governadores do Ceará onde trabalharam para melhorar a educação, com resultados.

Izolda ganhou dimensão nacional por conduzir o vitorioso processo de reformas do ensino no município de Sobral, até hoje uma referência a ser estudada. E Camilo por ter generalizado para todo o Ceará o projeto da Alfabetização na Idade Certa, baseado na coordenação descentralizada, foco nos resultados por meio de estímulos, cooperação e monitoramento da alfabetização nas escolas e municípios.

A receita para as prioridades do MEC estava dada e era praticamente consensual entre os entes federativos e educadores: avanço do ensino integral, alfabetização na idade certa, aperfeiçoamento do novo ensino médio, formação inicial e continuada dos professores, enfrentamento da evasão escolar e empenho de esforços em políticas educacionais para a recomposição das aprendizagens comprometidas nos tempos da pandemia.

Mas a percepção otimista mudou no apagar das luzes de 2023. Nestes 12 meses, não se viu o início da transformação necessária e esperada.  

A ficha caiu com a realidade exposta nos resultados do PISA realizado em 2022. Os dados revelaram uma educação estagnada no mesmo patamar de doze anos atrás e bem abaixo da média do que a OCDE define como aceitável. Em matemática, 73% dos nossos alunos de 15 anos obtiveram um desempenho abaixo do aceitável e não sabem realizar operações simples para a idade. O Brasil continua no último pelotão dos países avaliados. Nada a comemorar em relação ao desempenho do país nesta avaliação internacional. E temos um gravíssimo problema na formação dos nossos professores. Não apenas nos egressos do ensino a distância, mas também de cursos presenciais.

Camilo e Izolda não são diretamente responsáveis por esse quadro dantesco. Até porque o PISA foi realizado antes de terem assumido o comando do Ministério da Educação. Mas os dados, diante das dificuldades e da lentidão do governo Lula para avançar em agendas emergenciais, deixaram evidente que é preciso romper o marasmo e assumir um sentido de urgência na implementação de prioridades sobejamente conhecidas que deveriam dar sentido à nova gestão do MEC.

Desperdiçou-se a janela de oportunidades que o início de governo representa: o ensino integral se expande a passo de tartaruga e, até agora, o enfrentamento do gargalo da formação inicial e continuada dos professores não saiu do plano das intenções.

O exemplo mais emblemático da letargia no enfrentamento das questões que podem realmente fazer a diferença é o da Reforma do Ensino Médio.

O Novo Ensino Médio teve problemas na sua implementação, mas seu eixo era essencialmente correto. Seguiu parâmetros da educação dos países desenvolvidos –onde as disciplinas seriam ministradas num conteúdo de formação geral básica, mas também seriam trabalhadas de forma transversal nos chamados itinerários formativos, escolhidos pelos próprios estudantes segundo suas vocações e interesses. A Reforma também incentivou o ensino técnico/profissionalizante e incorporou as principais ideias do projeto de lei de autoria do deputado Reginaldo Lopes, do PT de Minas Gerais.

A crítica ao Novo Ensino Médio não se deveu apenas aos seus problemas de implementação. Havia um componente ideológico. Para a esquerda, o modelo tinha um pecado original: a Reforma foi obra do governo Temer. Isso ficou muito claro já na equipe de transição do governo Lula, quando o grupo de trabalho da Educação dividiu-se entre os que preconizavam o aperfeiçoamento e os que simplesmente defendiam o fim do Novo Ensino Médio e a volta ao antigo modelo.

Por pressão de Lula, Camilo Santana optou por um meio termo. Fez concessão ao braço esquerdo do governo, e tentou suspender temporariamente a implementação do Novo Ensino Médio. Ao mesmo tempo, deflagrou uma longa e exaustiva consulta pública sobre seu formato. Todo o ano letivo foi consumido nessa consulta com o ensino médio navegando em um mar de indefinições. Entidades corporativas tentaram influenciar e a CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação) foi aguerrida na defesa do velho modelo, reconhecidamente tido como anacrônico e descolado da realidade dos alunos.

Quando finalmente o MEC encaminhou seu projeto para o Congresso, faltou habilidade política para negociar com o relator, o deputado Mendonça Filho, ex-ministro da Educação, a aprovação da proposta do governo. Ao sentir que seria derrotado na Câmara, cuja tendência era de aprovar o substitutivo de Mendonça Filho, o governo simplesmente retirou o requerimento de urgência, jogando a votação na Câmara para março.

Ou seja, o ano letivo se iniciará sem haver uma definição sobre qual será o formato do Ensino Médio e é bem provável que sua implementação vá para as calendas gregas, provavelmente para 2025. Mais grave: todas as mazelas do velho modelo, de baixa qualidade e estimulador da evasão escolar, continuarão a pairar sobre a educação de nossos jovens.

Ora, se o próprio MEC define a reforma do ensino médio como uma prioridade para a reversão do quadro calamitoso da educação que faz o Brasil comer poeira nos exames do sistema internacional de avaliação, nada justifica a procrastinação de sua implementação. 

Camilo e Izolda serão cobrados pelo atraso e, daqui em diante, terão de apresentar   resultados concretos. Novos resultados negativos do desempenho de nossos alunos serão de sua responsabilidade.

O fracasso do 8 de janeiro

Em seu mais recente livro, Como Salvar a Democracia (Cia das Letras), Steve Levitsky e Daniel Ziblatt fazem uma comparação entre a reação dos Estados Unidos à invasão trumpista do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, e a do Brasil em relação à intentona bolsonarista de 8 de janeiro de 2023. Sua conclusão é surpreendente: “O Brasil rechaçou a sua mais recente ameaça à democracia, ao contrário dos Estados Unidos”. 

Os autores relembram que os republicanos nos Estados Unidos defenderam e protegeram Donald Trump e até hoje, na sua grande maioria, não reconhecem sua derrota eleitoral. Aqui no Brasil o desenrolar da história foi diferente. Na mesma noite em que a vitória de Lula foi anunciada, os principais aliados de Jair Bolsonaro reconheceram a derrota de forma pública e inequívoca e posteriormente jogaram a pá de cal. “A direita brasileira também condenou vigorosamente a insurreição de 8 de janeiro”, dizem.

Estes episódios ressaltam a diferença de postura dos partidos da direita tradicional do Brasil e dos Estados Unidos. Enquanto a maioria dos líderes republicanos se recusa até hoje a aceitar publicamente os resultados da eleição de 2020, no Brasil o resultado da eleição de 2022 é uma questão pacificada. Outra diferença fundamental: os republicanos se empenharam para frustrar esforços do Congresso para impugnar e condenar Trump. Já no Brasil, Bolsonaro foi condenado pela Justiça Eleitoral, sem maiores contestações.

Assim, por incrível que possa parecer, os partidos e as instituições brasileiras deram uma resposta mais satisfatória do que os americanos. Como dizem os autores de Como Salvar a Democracia: Bolsonaro não chegou mais longe “porque as elites políticas e militares deixaram claro que não o apoiariam”.  

Certamente essa não foi a causa única para o fracasso da tentativa de golpe que fez do 8 de janeiro o Dia da Infâmia, para utilizar a expressão cunhada pela ex-ministra do STF, Rosa Weber. Mas a conclusão de Levitsky e Ziblatt guarda sintonia com as palavras de Lula, pronunciadas no sua mensagem de Natal: “felizmente a tentativa de golpe causou efeito contrário. Uniu todas as instituições, mobilizou partidos políticos acima de ideologias, provocou pronta reação da sociedade.”

Isso não aconteceu nos Estados Unidos. Sua polarização até hoje é bem mais intensa do que a brasileira e paira sobre a democracia americana a ameaça de retrocessos face a resiliência da candidatura Donald Trump em 2024.

Uma das grandes causas para a intentona ter flopado foi a falta de uma ampla base social para o golpe. Seus arquitetos confundiram a votação expressiva de Bolsonaro como aval para a ruptura democrática. A base de sustentação para um golpe estava reduzida ao núcleo duro e radical do bolsonarismo. Governadores como Tarcísio de Freitas (SP) e Romeu Zema (MG) fizeram questão de, rapidamente, condenar o assalto aos três poderes da República.

Para entender sua derrota convém traçar um paralelo entre o Brasil do 8 de janeiro de 2023 com o de 31 de março de 1964. Naquela época, o golpe foi vitorioso por contar com uma base social de massas, principalmente na classe média, e por ter apoio de parte expressiva do Congresso Nacional, do empresariado e das Forças Armadas, como instituição. Basta citar um fato histórico. O cargo de presidente da República foi declarado vago pelo presidente do Congresso, senador Auro de Moura Andrade, quando João Goulart ainda se encontrava no território nacional.

Também a conjuntura internacional favoreceu o golpe, com o mundo dividido em dois blocos ideológicos e em plena guerra-fria. O Brasil estava na área de influência dos Estados Unidos, assim como a América do Sul. Daí o apoio dos americanos aos golpes do Brasil, do Uruguai, do Chile e da Argentina.

Todas essas condições faltaram à conspiração mal-sucedida do 8 de janeiro. O Supremo Tribunal Federal foi fundamental na contenção de incursões golpistas e na defesa da legalidade, das eleições e da democracia. Do mesmo modo se posicionaram os presidentes das duas casas legislativas, o empresariado, a sociedade civil e as instituições da República.

Se em 1964 os Estados Unidos tiveram um papel importante para a vitória do golpe, a história foi outra em janeiro do ano passado. O mundo atual é bem diferente da época da guerra-fria. Sinal dos novos tempos: o governo americano e seu presidente Joe Biden pressionaram para que o pronunciamento das urnas fosse respeitado, alertando para possíveis retaliações em caso de uma ruptura democrática no Brasil.

Pode-se especular se a história teria outro desfecho caso Donald Trump tivesse derrotado Joe Biden. Desde a Segunda Guerra Mundial, a doutrina militar brasileira tem identificação com a dos Estados Unidos e é impensável a modernização de nossas Forças Armadas sem a aquisição de materiais bélicos americanos. Mas certamente a posição de Biden contribuiu para nossos militares não ingressarem em tresloucada aventura.

Foi determinante o caminho seguido pelos militares desde a redemocratização de 1985, assegurando o mais longo período de nossa história republicana sem intervenções ou quarteladas. Ao se dedicarem até 2018 exclusivamente às suas funções constitucionais, as Forças Armadas se transformaram em uma das instituições mais respeitadas pelos brasileiros.

A infiltração do bolsonarismo nas Forças Armadas revelou-se mais profunda do que se imaginava, mas, apesar disso, não se viu a instituição envolvida no Golpe. Não houve um só movimento de tropas, apesar de o país ter 680 estabelecimentos militares. Isso demonstra a importância de ter uma cadeia de comando com controle da tropa e do estamento militar estruturado na hierarquia e disciplina.

Talvez esteja aqui um grande acerto de Lula. Observou o critério da antiguidade na escolha dos comandantes militares e escolheu um ministro da Defesa de perfil conciliador. A estratégia revelou-se correta. Em sua nota de Natal à tropa, o comandante do Exército, general Tomás Paiva, deixou claro que quer sua tropa focada “em coisa de soldado”, deixando a política de fora dos quarteis.

Voltando a Steve Levitsky e Daniel Ziblatt, talvez os autores de Como Salvar a Democracia tenham sido exageradamente otimistas na leitura de como superamos uma das mais graves ameaças à nossa democracia, desde o fim do regime ditatorial. Mas é alentador ler as palavras de um general entrevistado por Miriam Leitão: “Não pode haver essa percepção de que o Brasil pode ter um retrocesso que não cabe mais no século XXI. Os problemas da democracia se resolvem na democracia”.