A sereia e o mar

Desfeito o mistério da odisseia de Luciano Huck. Desde quinta-feira passada, quando o barômetro político Estadão-Ipsos apontou o apresentador com 60% de aprovação, o mundo político entrou em ebulição. Consolidava-se ali um possível candidato com potencial para romper a polarização Lula-Bolsonaro e liderar a tão sonhada, pelos brasileiros, renovação política.

E as pesquisas em suas mãos o davam com dois dígitos nas intenções de voto, o que, convenhamos, é um mar de possibilidades eleitorais nas quais ele poderia nadar de braçada.

Mas Huck é uma personalidade ímpar, não se enquadra nos padrões aos quais nos acostumamos. Normalmente, candidatos desistem de suas intenções eleitorais após um bombardeio de notícias negativas. Huck é o primeiro a fazê-lo após um fato altamente positivo: ter sua imagem mais do que aprovada.

De acordo com suas palavras, resistiu ao canto da sereia, não para retornar à zona de conforto de sua Penélope ou das redes sociais. Mas por achar que pode dar sua parcela de contribuição ao país por meio de movimentos cívicos, sem ser candidato. Não nega a política, apenas diz que ela é insuficiente e necessita ser renovada.

Sua carta não deixa de ser uma tapa de luva de pelica em quem o via como um aventureiro e aríete moderno das elites empresariais, cuja possível candidatura – legítima, diga-se de passagem- se sustentaria apenas por ser uma celebridade. Que o mundo carcomido da política formal tenha resistido a ele, nenhuma novidade. E muito menos a baixaria de Lula de o caracterizar como o candidato da Globo.

Surpresa foi a reação de segmentos da intelectualidade e de mentes embotadas da esquerda que se dizem renovadoras.

Por questões menores mergulharam na onda da desqualificação de Huck, como se seu ingresso na disputa presidencial fosse a mais perfeita edição da espetacularização da política.

Não se deram conta que estavam ajudando a dinamitar uma das possibilidades de o centro se aglutinar em torno de uma proposta mais arejada, pautada na redefinição do papel do Estado, na combinação do liberalismo político com a universalização dos direitos sociais e em novos padrões éticos.

Amarrado ao mastro para não cair na tentação da sereia, Huck jogou a toalha, mas o mar onde sua candidatura poderia navegar continua imenso. Ele vem se agitando desde as jornadas de julho de 2013, quando ficou evidenciado o fosso entre a representação política e a sociedade.

Mesmo com as manifestações multitudinárias do impeachment, o sistema político aprofundou sua impermeabilidade, com vistas a garantir sua reprodução nas eleições de 2018.

Mudanças também ocorreram em águas mais profundas e em escala planetária. A fragmentação das classes e o advento da sociedade do conhecimento e identitária tornaram anacrônicas polarizações passadas, como burgueses e proletários, esquerda e direita.

Em grande medida, a crise de representação decorre daí.  No caso brasileiro o fenômeno foi agravado pelas mazelas da forma de se fazer política e pela maior crise ética, econômica, social e política de nossa história.

Vivemos a seguinte contradição: há um espaço enorme para uma candidatura de centro e renovadora, mas o sistema político praticamente inviabiliza a renovação. Os partidos tradicionais se fortaleceram por meio de definição de regras eleitorais voltadas para a reeleição de seus parlamentares. Mas são gigantes de pés de barro sem conexão com a sociedade.

A demanda por uma candidatura capaz de aglutinar o centro e promover a renovação política continua existindo, independentemente da desistência do apresentador.  Alguém vai preencher esse espaço.

De imediato, os ventos da fortuna parecem soprar na direção de Geraldo Alckmin. No mesmo dia o governador ganhou na loteria por duas vezes: com o fim da odisseia de Huck e com a sua unção como presidente do consenso peessedebista.  Terá contudo o desafio de mostrar ser competitivo a ponto de atrair os partidos tradicionais do centro democrático e, ao mesmo tempo, ser o depositário das expectativas de renovação da política, que Luciano Huck tão bem expressou ao final do seu artigo:

“Não há nada mais importante do que tomarmos consciência da importância da política e de que precisamos nos mover concretamente na direção da atuação incisiva, para que não sejamos mais vítimas passivas e manobráveis de gente desonesta, sem caráter e incapaz de entender o conceito básico de interdependência ou do pensar no coletivo (…) A  hora é de trabalhar por soluções coletivas inteligentes e inovadoras para o país, e não de focar no próprio umbigo ou de alimentar polêmicas pueris e gritas sem sentido”.

Perfeito, com um acréscimo: e também para não sermos vítimas de candidaturas que querem nos remeter ao mar cinzento, onde cantam as sereias do populismo ou da incompetência.

___________________________________________________________________________________________

Este artigo foi publicado originalmente no site do jornal O Globo, no Blog do Noblat:

http://noblat.oglobo.globo.com/artigos/noticia/2017/11/sereia-e-o-mar.html

Também pode ser lido nas seguintes páginas:

http://50anosdetextos.com.br/2017/a-sereia-e-o-mar/

http://www.fundacaoastrojildo.com.br/2015/2017/11/29/25788/

 

O condestável de Temer

Reza o folclore político que, ao passar a faixa presidencial para seu sucessor, Hermes da Fonseca teria dito a Venceslau Brás: “olha Venceslau, Pinheiro Machado é tão bom amigo que governa pela gente”. O mesmo pode-se dizer de Rodrigo Maia. Ele está tão próximo de Michel Temer que governa pelo presidente. Nomeou o novo ministro das Cidades, definiu como será a repartição do butim da pasta entre o “Centrão ampliado” e vai fazer o presidente do BNDES. Ai do ministro que não cair em sua graça. É tombo certo.

O fortalecimento do condestável de Temer foi uma decorrência natural do papel que jogou na votação das duas denúncias contra o presidente. Ainda que tenha sobrevivido ao seu Waterloo, Michel Temer saiu da refrega extremamente enfraquecido. Sua base de sustentação, antes estimada em 80% dos parlamentares, desidratou.

Sem votos para aprovar um mínimo de uma reforma da Previdência para chamar de sua, passou a depender dos parlamentares que sabem jogar o jogo do toma lá, dá cá. Deu-se a repetição de uma velha lei da política: presidente fraco, parlamentares vorazes. Mesmo se submetendo a essa lógica, ficou sem a garantia de que levaria adiante seu programa de reformas.

O jeito foi apelar para a figura emergente do presidente da Câmara, estabelecendo com ele um governo de coabitação, uma espécie de “parlamentarismo a lá Temer”, com Maia exercendo, de fato, o papel de primeiro ministro. Nada de substancial importância será implementado pelo governo sem o seu nhil obstat. É dele a responsabilidade de viabilizar qualquer votação, incluindo as mudanças na Previdência.

A assunção de Maia é produto da conjunção de uma série de fatores. A começar da mudança de perfil do governo Temer. Inicialmente o governo se sustentava em um tripé: o seu núcleo duro formado por velhos camaradas do PMDB, pela equipe econômica e pelo PSDB, que lhe emprestava credibilidade junto ao mercado e à sociedade.

Esse suporte ruiu. Não só porque alguns dos membros do núcleo duro foram abatidos pela Lava Jato, mas também porque a crise levou de roldão o PSDB, com os tucanos perdendo credibilidade e densidade. Reféns da dúvida existencial de ser ou não ser governo, os tucanos deixaram de ser um parceiro confiável. De fininho, estão saindo do governo.

Como em política não há tempo para o vácuo, o DEM ocupou o espaço, avançando na ampliação do Centrão com seu partido e mesmo com parlamentares do PMDB. O papel de Maia foi o de ser a argamassa desse novo pacto, transformando-se na liderança natural do chamado “Centrão ampliado”.

A dúvida é se é um movimento de fôlego curto ou se é de longo alcance, com vistas a 2018. O “Pinheiro Machado” de Temer pensa grande. De imediato quer turbinar seu partido, ampliando sua bancada de 29 para 45 deputados. Por sua vez, o presidente sonha em ter alguém na urna eletrônica que defenda o seu legado.

Com o PSDB perdendo protagonismo — por enquanto não oferece expectativa de poder –, potencializa-se a centrifugação do centro, com os partidos deste campo buscando outras alternativas. Nesse quadro, a confluência dos interesses de Temer e Maia poderia desembocar em uma candidatura de centro-direita, com nome, RG e CPF: Henrique Meirelles.

Qual o grau de competitividade dessa candidatura, difícil prever. Teria, claro, o handicap de um tempo televisivo mastodôntico, o que em uma campanha eleitoral não é pouco. A certeza deste trunfo estaria na aliança do DEM, PMDB e as siglas do Centrão – PP, PR, PSD, entre outros.

Os estrategistas do Palácio do Planalto incensam a candidatura Meirelles confiantes na recuperação da economia e no seu impacto na população até as eleições. Temer seria, portanto, um cabo eleitoral não desprezível. Na hipótese de tudo dar certo, Rodrigo Maia se reelegeria presidente da Câmara em 2019 e continuaria como o condestável do novo governo, assim como Pinheiro Machado foi em vários governos da República Velha.

Sonhar não custa. Mas a vida costuma contrariar os sonhos. Além de Meirelles ser um andor pesado de se carregar, dada principalmente à sua falta de carisma, o grau de rejeição do governo Temer é de tal envergadura que seria suicídio político alguém disputar eleição como seu candidato.

Mais: o ritmo lento da recuperação da economia não justifica projeções triunfalistas para o horizonte de 2018. Se a economia crescer 2% no próximo ano, como estima a equipe econômica, não será nenhuma Brastemp. Dificilmente a melhora terá impacto profundo no humor dos brasileiros.

O governo de coabitação implica em riscos para o próprio Rodrigo Maia. Se a reforma da Previdência não for aprovada, será responsabilizado pelo fracasso. Dada a inanição do governo em matéria de popularidade, seu próprio partido pode pressioná-lo para descolar de Temer para não sofrer uma hecatombe eleitoral. Sem falar que terá de administrar a ciumeira do Senado e as armadilhas montadas por caciques peemedebistas.

Na linha fina em que terá de se equilibrar, convém ao condestável de Temer levar em conta o velho conselho de Pinheiro Machado: “nem tão depressa que pareça fuga, nem tão devagar que pareça provocação”.

_______________________________________________________________________________________

Este artigo foi publicado originalmente no site do jornal O Globo, no Blog do Noblat:

http://noblat.oglobo.globo.com/artigos/noticia/2017/11/o-condestavel-de-temer.html

Outros sites que publicaram este artigo:

http://50anosdetextos.com.br/2017/o-condestavel-de-temer/

 

Refundação do Estado

A questão do papel Estado é um divisor de águas e tende a estar no centro da disputa presidencial. As duas candidaturas populistas estão presas a modelos passados que perderam sentido e não respondem às necessidades do século 21. O Brasil de hoje é inteiramente diferente do que era nos tempos do varguismo ou do estatismo do presidente militar Ernesto Geisel. Mas a direita e a esquerda estatistas pensam ainda ser possível alavancar o desenvolvimento a partir do intervencionismo estatal. Não por coincidência, Lula e Bolsonaro são pródigos em elogios à era Geisel.

O Estado que aí está gerou o capitalismo de laços, levou o país à maior crise econômica de sua história. Mais: perpetuou iniquidades e privilégios de minorias incrustadas em seu aparato. Nele coabitam o patrimonialismo e o corporativismo, duas forças atrasadas e refratárias às mudanças.

São elas os principais entraves às reformas necessárias e à modernização da economia. Vide as resistências à reforma da Previdência e às privatizações da Eletrobrás e dos aeroportos, emblemáticas do espúrio casamento entre corporações de trabalhadores e patronais com o clientelismo político.

Na outra ponta, o Estado oferta serviços públicos de baixíssima qualidade, mesmo sendo financiado por uma carga tributária altíssima. A sociedade carrega um fardo pesadíssimo para sustentar um aparato ineficiente, burocrático, perdulário e frequentemente corrupto.

Esse Estado não serve ao Brasil. Não alcançaremos o crescimento sustentado, não seremos um país socialmente mais justo, não lograremos a equidade enquanto ele não for desconstruído.

O grande desafio do campo democrático alternativo aos dois extremos autoritários e regressivos é oferecer aos brasileiros um outro projeto de Estado, capaz de responder aos desafios de um mundo em intensa transformação e de colocar o país no patamar das sociedades modernas e desenvolvidas.

Felizmente, não partimos do zero na definição do Estado que queremos. Já há muita massa crítica e iniciativas que jogam luz no debate necessário. Todas elas convergem para a necessidade imperiosa da refundação do Estado, tese que permeou o seminário Desafios Políticos de um Mundo em Intensa Transformação, promovido pelo ITV/PSDB e FAP/PPS, que está presente no manifesto dos intelectuais do PSDB e nas conclusões do Quarto Encontro da Roda Democrática – movimento suprapartidário do qual faço parte.

A pedra de toque é a redefinição de seu papel, no sentido da transformação de um Estado produtor e financiador da produção, em um Estado regulador e provedor de serviços públicos de qualidade.

Se no passado se fazia necessária a forte presença estatal na economia — como aconteceu nos anos 1950/60 — hoje isso não se justifica mais. Em uma economia globalizada e de forte inovação tecnológica o motor do desenvolvimento são os investimentos privados, internos e externos. A inflexão se impõe também porque o Estado não tem pujança para alavancar os investimentos e ao mesmo tempo cumprir com suas obrigações sociais.

Ao Estado moderno compete desenhar o marco regulatório para a atração do capital privado, definir as normas de proteção dos consumidores e do meio ambiente, dar segurança jurídica aos investidores, assegurar a concorrência.

O esforço, portanto, deve ir na direção da abertura da economia brasileira e de realizar um ousado programa de privatização para que possa redirecionar seus recursos e energia para outras prioridades.

O Estado não é um fim em si mesmo, ou não deveria ser. Seu principal papel é o de ser o meio para a promoção da equidade, da igualdade de oportunidades.

Liberado de sua função de produtor e financiador da produção, suas prioridades seriam fornecer aos brasileiros educação de qualidade, saúde e segurança, entre outros serviços.

No caso da educação, o foco deve ser o ensino básico. As nações que conquistaram a equidade e o crescimento sustentado trilharam esse caminho. Não será diferente com o Brasil.

Na era da Quarta Revolução Industrial, da robotização e da inteligência artificial os países que não ingressarem no restrito clube da inovação tecnológica serão meros coadjuvantes no cenário internacional. Nessa área, o atraso do Brasil é gritante, motivo mais do que suficiente para revolucionar também a concepção do Estado.

Sem um novo pacto federativo, sem as reformas estruturantes -entre as quais a previdenciária-, sem o enxugamento do aparato estatal, o Brasil continuará refém de políticos parasitários e fisiológicos, de capitalistas de compadrio, de corporações sindicais e de servidores que não abrem mão de privilégios.

Refundar o Estado significa livrar o país destes grilhões e acabar com o patrimonialismo e o corporativismo.

_______________________________________________________________________________________

Este artigo foi publicado originalmente no site do jornal O Globo, no Blog do Noblat:

http://noblat.oglobo.globo.com/artigos/noticia/2017/11/refundacao-do-estado.html

 

Ou sai ou é saído

Aliança política é um pouco como casamento. Tem dia marcado para se concretizar e não tem hora agendada para o divórcio.  Mas os tucanos querem estabelecer data para a separação de corpos. Enroscado há seis meses no drama shakespeariano de ficar ou sair do governo Michel Temer, o PSDB corre contra o relógio. Não é possível mais postergar uma decisão.

Por ter perdido o timing – a decisão de sair do governo poderia ter sido tomada em maio, quando veio a público a delação da JBS – ou sai agora ou corre o risco de ser saído. Não só por causa dos olhos gordos do Centrão, mas por ter se revelado um aliado não confiável.

O Dia D será 9 de dezembro, data da convenção nacional do partido.

Se decidir continuar no governo pela força da inércia terá produzido muito barulho por nada. Sem falar no risco de ser expurgado um pouco mais à frente. Para sair, contudo, terá de operar a retificação de sua estratégia, ou melhor, adotar outra estratégia – a de redução de danos –  por meio de um duplo movimento. Do contrário, serão coadjuvantes da disputa presidencial, como alertou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em seu artigo mais recente.

Primeiro os tucanos terão de cuidar do seu front interno, de pacificar suas fileiras. Na política também se aplica a velha lei da guerra, segundo a qual nenhum exército sairá vitorioso se for para o campo de batalha com suas tropas divididas.

O racha pela metade da bancada de deputados dá bem a dimensão do enrosco. É como se existissem dois PSDB. Aliás, Tasso Jereissati foi cristalino: “o PSDB desses caras não é o meu”.

Se saírem da convenção sem a unidade necessária, não estarão em condições de apresentar uma candidatura competitiva e aglutinadora do campo democrático. Quem não agrega os seus, não vai conseguir aglutinar os parceiros. Simples assim.

Só este movimento não basta. A coesão interna será inócua se acontecer à despeito da reconciliação do PSDB com os eleitores, que, diga-se de passagem, andam fulos com os tucanos. E com razão. A pesquisa encomendada pela direção partidária não deixou margem quanto ao sentimento de repulsa do eleitorado, com repúdio explícito às guerras intestinas, ao atrelamento a um governo de baixíssimo padrão ético e à pusilanimidade no acerto de contas com o senador Aécio Neves.

O reencontro com o sentimento das ruas não acontecerá se o desembarque do governo Temer não for acompanhado pelo aprofundamento do “mea culpa” inaugurado por Tasso Jereissati. Tem razão o presidente do PSDB/SP, Pedro Tobias, quando afirma que continuar no governo “é partir para o suicídio coletivo”. Mas pular fora equivalerá a dar cavalo de pau em navio, se a manobra estratégica não for bem operada.

Sem autocrítica quanto aos seus desvios e sem apresentar à nação um projeto reformista e socialmente justo, o desembarque pode ser entendido por amplas parcelas da sociedade como uma manobra oportunista, meramente eleitoreira. A pecha só não vingará se o partido tiver coragem de cortar a própria carne. São incontornáveis as perguntas: por que só agora, por que não antes? Os eleitores cobrarão respostas convincentes.

Sair do governo por sair não levará o PSDB a lugar algum. É preciso qualificar o ato. O manifesto assinado por Edmar Bacha, Pérsio Arida, Elena Landau, Bolívar Lamounier e Luiz Roberto Cunha joga luz sobre o debate necessário. Aponta para questões importantes, como o resgate da ética, a redefinição do papel do Estado, a defesa da austeridade fiscal, do não intervencionismo estatal, da modernização do ambiente de negócios.

Mas há propostas que precisam ser melhor debatidas para entender o seu sentido. O que os autores quiseram dizer com a afirmação “O Governo não precisa ter escolas, nem hospitais. Não precisa contratar professores ou médicos. Mas precisa prover saúde e educação de qualidade. Tem que ter indicadores de eficiência na tomada de decisão de como gerir os recursos das áreas de educação e saúde” ?

A dificuldade em operar um movimento duplo de tamanha magnitude está na peculiaridade dos conflitos atuais. A tradição tucana é de disputas em torno de projetos pessoais, muitas vezes equacionadas em círculos fechados. O atual conflito foge à tradição. É de fundo e impossível de ser administrado à moda antiga.

Há, claro, enfoques diferenciados quanto à tática eleitoral. Os adeptos da continuidade na base do governo apostam na força da caneta presidencial para garantir a reeleição dos parlamentares tucanos. A outra ala entende que os tucanos estarão praticando haraquiri eleitoral se continuarem no governo.

Mas há uma questão maior, que no fundo diz respeito ao que o PSDB se pretende. Se vai se conformar com a sua “peemedebização ou se vai retornar às suas origens e valores socialdemocratas, ou ainda se vai assumir o perfil de um partido social liberal similar a outros tantos que já existem na praça.

É a isso que a convenção do dia 9 tem de responder para o PSDB sair do governo de cabeça erguida e não ser saído pelas portas do fundo.

_______________________________________________________________________________________

Este artigo foi publicado originalmente no site do jornal O Globo, no Blog do Noblat:

http://noblat.oglobo.globo.com/artigos/noticia/2017/11/ou-sai-ou-e-saido.html

 

Vivandeiras petistas

“O que nós de esquerda devemos perguntar aos militares é a quem eles querem servir: ao povo e à nação ou à facção financista e rentista que assaltou o poder? Que rasgou a Constituição e o pacto social e que destrói, dia a dia, a soberania nacional, entregando de mão beijada para o capital externo nossas empresas – estatais ou não -, nossas riquezas minerais, nossas terras férteis.”

Não se trata, caros leitores, de um manifesto dos anos 50/60, quando a esquerda, contaminada pelo golpismo que permeou a nossa história desde o advento da República, também rondava os quartéis em busca de um “general do povo” e dava sua contribuição negativa para a divisão das Forças Armadas.

A citação é parte de um artigo de José Dirceu publicado recentemente no site Diário do Centro do Mundo e compartilhado nas redes sociais do lulopetismo, propugnando o “diálogo com os militares” para atrai-los para seu projeto de poder.

O apelo a um discurso eivado de um nacionalismo anacrônico presta-se ainda a disputar com o deputado federal Jair Messias Bolsonaro a influência no mundo castrense, dada a pregação “nacionalista” do militar candidato.  Não gratuitamente, o PT tem sido pródigo em elogios ao modelo “nacional estatista” do período, do presidente e general, Ernesto Geisel.

A pretendida aproximação com os militares é parte de movimento estratégico mais amplo do PT, na direção de sua bolivarianização. O modelo chavista de “democracia direta” voltou a ser cultivado por Lula. Em entrevista ao jornal espanhol El Mundo declarou que, se eleito, convocará referendo revogatório de medidas adotadas no governo Michel Temer. Para delírio do braço esquerdo do lulopetismo, o caudilho repetiu a ameaça em comício de sua caravana em Minas Gerais.

Na hipótese de um novo governo, dificilmente Lula teria maioria no parlamento para impor seu programa. Como o mensalão e o petrolão inviabilizaram a construção de uma maioria pela via da corrupção, restaria a ele a alternativa de emparedar o Congresso e o Poder Judiciário por meio de consultas populares.

Não há na nossa Constituição a figura do referendo revogatório.  Sua aplicação no Brasil implicaria em ruptura constitucional, em o país se enveredar por uma “ditadura popular”, a exemplo da Venezuela de Hugo Chavez e Nicolás Maduro. Mas quem disse que não é essa a ideia?

Ora, as Forças Armadas são um obstáculo a tais planos. Desde a redemocratização dedicam-se exclusivamente a cumprir suas obrigações constitucionais e profissionais, razão pela qual temos o maior período desde o advento da República sem quartelada ou qualquer tipo de intervenção militar na vida política nacional.

Desviá-las de suas funções constitucionais é pré-requisito para o Partido dos Trabalhadores avançar em seu projeto autoritário. É aí que entram em campo as vivandeiras petistas com o objetivo de reintroduzir nos quartéis a polarização “esquerda-direita”.  Querem retornar aos tempos da guerra-fria, quando a esquerda, maniqueisticamente, dividia as Forças Armadas em duas correntes: a “entreguista e golpista” e a “nacionalista e democrática”. Sintomaticamente, os termos estão presentes no artigo de José Dirceu.

A história está aí para registrar que o golpismo não foi monopólio da direita.  A esquerda também fez suas incursões golpistas, vide 1935.

Na Venezuela, a cooptação dos militares se deu pela sua transformação em uma elite econômica dotada de privilégios e detentora dos principais cargos de direção das principais empresas e dos altos escalões do governo. Hoje, são o principal esteio da ditadura venezuelana. Os estrategistas do PT não ignoram o precedente histórico do modelo chavista, que, de resto, é o mesmo da Coreia do Norte, onde os militares são o principal sustentáculo da ditadura de Kim Jong-Um.

Para atrair os militares, o lulopetismo ressuscita concepções da esquerda que não deram conta da realidade brasileira nos anos 50/60, que dirá agora.

Em pleno século vinte e um, no limiar da Quarta Revolução Industrial e de mudança de paradigmas na economia, pensam o desenvolvimento do país pela via autóctone e de ruptura com o capital externo. O “imperialismo yankee” é visto como o invasor externo que suga as riquezas nacionais. Nessa visão distorcida, a missão das Forças Armadas seria defender o pré-sal, a Amazônia, as empresas nacionais do “polvo imperialista”.

Só que o Brasil não é a Venezuela e nossas instituições castrenses em nada se assemelham às do país de Chavez e Maduro. Temos uma economia diversificada e integrada à economia mundial, uma sociedade bem mais complexa. Nossas Forças Armadas são instituições permanente de Estado e impermeáveis a discursos de quem quer instrumentalizá-las para viabilizar seu projeto de poder.

Os remanescentes da esquerda armada ainda não deglutiram a derrota do passado e agora tentam dividir as Forças Armadas.

Se pensam, com seu canto, atrair os militares para uma aventura, as vivandeiras, de esquerda ou de direita, darão com os burros n’água. Os militares brasileiros parecem estar escolados para embarcar nessa nau de insensatez.

_______________________________________________________________________________________

Este artigo foi publicado originalmente no site do jornal O Globo, no Blog do Noblat:

http://noblat.oglobo.globo.com/artigos/noticia/2017/11/vivandeiras-petistas.html