Diplomacia não se faz com o fígado

Se a relação entre países também se faz por meio de gestos, a surpreendente visita ao Brasil da futura ministra do exterior da Argentina, Diana Mondino, tem uma enorme simbologia. A ministra fez questão de ser a portadora da carta convite para que Lula esteja presente na posse do presidente Javier Milei, recém eleito no país vizinho. A visita dissipa nuvens responsáveis por leituras catastrofistas sobre as futuras relações entre o Brasil e o próximo governo argentino.

Representa uma mudança da água para o vinho na atitude adotada pelo candidato eleito e a do presidente que tomará posse em 10 de dezembro. Como afirmou o chanceler Mauro Vieira, “o que foi dito em campanha é uma coisa, o que acontece durante o governo é outra”. Assim, é do interesse do Brasil não ficar prisioneiro do que disse o candidato Milei, mas manter relações pragmáticas com nosso parceiro estratégico, com os quais temos fortes laços geográficos, históricos, comerciais e políticos.

A visita de Diana Mondino aconteceu uma semana depois da vitória de Milei, o que dá bem a dimensão do quanto o próximo governo percebe a importância do Brasil como parceiro estratégico da Argentina. Divergências ideológicas entre os presidentes dos dois países não podem servir de obstáculos para uma relação madura e responsável.

A bola agora está com o Brasil, mais particularmente com Lula. O princípio da reciprocidade é um valor fundamental da doutrina diplomática brasileira, construída pelo Itamaraty ao longo do tempo. A conferir se nosso presidente retribuirá o gesto do novo governo argentino, aceitando o convite para estar na posse do colega. Ou se dará ouvidos a assessores presos a mediocridades que recomendam não ir à posse por causa das palavras duras do então candidato dirigidas a Lula. O presidente brasileiro ficou abespinhado porque, antes dele, Milei já havia convidado Jair Bolsonaro para a posse, mas nem isso deveria servir de desculpa para Lula recusar sua presença em Buenos Aires.

Não se faz diplomacia com o fígado. Faz-se com sangue frio, muito profissionalismo e   competência. E sem ruídos.

A própria visita da ministra Diana Mondino foi arquitetada sem muito espalhafato, graças ao entendimento dos embaixadores do Brasil e da Argentina e do nosso chanceler.  O encontro foi além das expectativas, com Mondino sinalizando que seu país apoia a conclusão do acordo entre o Mercosul e a União Europeia, como é do desejo do Brasil. Eis aí uma atitude concreta à qual o governo brasileiro deve valorizar e levar em consideração para Lula se fazer presente na posse do novo mandatário argentino. Sem dúvidas, isto contribuiria em muito para o distensionamento entre os governos das duas nações.

A China nos dá um bom exemplo de como se deve atuar para distensionar a relação entre dois países. Durante a campanha eleitoral, Javier Milei falou cobras e lagartos do regime chinês, a quem chamou de assassino, com quem prometeu romper relações caso eleito.

Pois bem, o presidente chinês, Xi Jinping, tomou a iniciativa de enviar uma carta ao presidente eleito da Argentina, parabenizando-o pela vitória e manifestando o desejo de seu país de manter sua relação estratégia com a Argentina, da qual é o principal parceiro comercial.  A carta de Jinping levou Milei a mudar o tom em relação a China e convidar seu presidente para a solenidade de sua posse.

E não poderia ser diferente. Graças aos chineses, o Banco Central argentino tem recorrido a operações de swap cambiais, transferindo valores diretamente para o Fundo Monetário Internacional, com quem a Argentina tem uma dívida astronômica. Milei está mudando sua postura em relação aos chineses porque isso é do interesse econômico do seu país.  E é assim que tem de ser. Países se movem por seus interesses estratégicos e não por ideologia.

O mesmo pode se dizer do Brasil. A Argentina é estratégica para nós e nós somos estratégicos para os argentinos. Seu mercado é o principal destino de nossas exportações industriais. Não precisamos chegar ao hiperbolismo da famosa frase do então presidente argentino Sáenz Peña de que “tudo nos une, nada nos separa”. Mas temos muitos interesses em comum. E soubemos superar pela via diplomática conflitos muito mais substantivos do que as farpas do então candidato argentino.

Devemos estar atentos aos rumos do próximo governo argentino e não comprar por valor da face afirmações feitas durante a campanha. Tanto em relação à política externa, como na política doméstica, especialmente na economia. Os primeiros sinais são de uma influência positiva de um polo moderado, do qual a ex-candidata Patrícia Bullirich e o ex-presidente Maurício Macri são suas maiores expressões. Ideias expressadas na campanha, como a dolarização da economia e a extinção do Banco Central, tendem a ser arquivadas, como adiantou o futuro ministro da Economia, Luiz Caputo, ex-ministro do governo Macri.

A visita de Diana Mondino ao Brasil está em sintonia com tal movimentação. É de nosso interesse o fortalecimento dessa tendência, razão pela qual deveríamos estimulá-la. Isso se fará se Lula responder positivamente ao convite de Javier Milei e se deixarmos a política diplomática a cabo do Itamaraty, um centro de excelência que atuou para desarmar os espíritos e criar um ambiente de normalidade nas relações Brasil-Argentina.

A política externa brasileira não pode ser ditada por ressentimentos ou birras. Não há espaço para mimimi do tipo exigir de Milei um pedido de desculpas a Lula. Isso é coisa de amador disposto a fazer diplomacia destilando bílis.

A direita na encruzilhada

Se quiser ter viabilidade eleitoral, a direita não pode ficar confinada ao gueto ideológico ultrarradical.

Por Hubert Alquéres

O curto-circuito na relação entre Jair Bolsonaro e Tarcísio de Freitas expressa um dilema mais de fundo. A direita brasileira está diante do impasse de decidir entre dois caminhos para tentar pousar no Palácio do Planalto em 2026. Ou segue o plano de voo traçado por Bolsonaro, ou adota uma estratégia mais moderada, acenando para o centro e, assim, conseguir acumular forças, ampliando seu arco de alianças.

A despeito de 2023 ter sido um ano para Bolsonaro esquecer, o ex-presidente se mantém irredutível na sua estratégia de apostar na cristalização da polarização, que tenderia a se reproduzir na próxima disputa presidencial. Por isso, preconiza uma oposição sem quartel ao governo Lula. Vem daí sua afirmação de que Tarcísio “dá suas derrapadas” e a relação entre os dois “não anda bem”. 

O ex-presidente tem adotado uma postura diante do governador paulista de morde e assopra. O elogia como “um baita administrador”, mas ao mesmo tempo ressalva que “jamais faria certas coisas que ele fez com a esquerda”. 

Por “essas coisas” entenda-se o apoio de Tarcísio à Reforma Tributária e elogios a Fernando Haddad. Bolsonaro ficou abespinhado com o governador, por ter dito que o ministro da Fazenda mudou para melhor. No rol de suas insatisfações está o apoio do governador paulista à candidatura do atual prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, que disputará a reeleição no próximo ano. O ex-presidente defende uma candidatura puro sangue do bolsonarismo, para a disputa da prefeitura de São Paulo, a principal do país.

A linha de tensionamento permanente e de radicalização atende ao núcleo duro do bolsonarismo. Diga-se, de passagem, esse núcleo tem seus queixumes em relação ao governador de São Paulo. Principalmente por não ter montado uma equipe com perfil bolsonarista. Hoje apenas duas secretarias – a de Segurança e a de Políticas para Mulheres – são comandadas por bolsonaristas raiz. Por detrás do verniz ideológico das reclamações esconde-se o velho fisiologismo de abocanhar, cada vez mais, nacos da máquina pública.

A questão é saber se essa estratégia é capaz de retirar o bolsonarismo do canto do ringue. Em primeiro lugar, Bolsonaro está inelegível por ter sido condenado na instância máxima da Justiça Eleitoral. Desde o fracasso do 8 de Janeiro, o bolsonarismo vive seu inferno astral, com a prisão em massa e condenação de participantes da sua intentona. E dá sinais de ter perdido o protagonismo nas ruas.  Prova disso foram os fiascos dos atos de 7 de Setembro, 12 de Outubro e 15 de Novembro, com as ruas praticamente vazias. Nada parecido com um ano antes, quando o bolsonarismo enchia as ruas de verde e amarelo.

A vitória de Javier Milei na Argentina pode ter dado gás ao bolsonarismo. Mas não interrompe seu esvaziamento. Nessas circunstâncias, lançar candidaturas a prefeitos em cidades estratégicas como São Paulo apenas para marcar posição ou para defender o “legado” de Bolsonaro é namorar com a derrota. Além do mais, as expectativas do ex-presidente de reverter na Justiça Eleitoral sua inelegibilidade é um sonho praticamente impossível.

A alternativa é a estratégia esboçada por Tarcísio Freitas, cujo horizonte é de longo prazo. No médio prazo, visa sua reeleição em 2026 e quatro anos depois disputar a presidência, como traçou seu competente enxadrista Gilberto Kassab. Claro que a política é dinâmica e esse calendário pode ser encurtado se o cavalo encilhado da disputa presidencial passar em frente ao Palácio dos Bandeirantes. Mas a rota está decidida, salvo chuva, tempestade ou trovoada.

Para alcançar o objetivo final, Tarcísio precisa realizar um bom governo, capaz de cacifá-lo para se reeleger. Isso implica em manter uma relação republicana com o governo Lula, descartando posturas como a de ser o “PSOL da Direita”, como queria Bolsonaro na votação da Reforma Tributária.

Tarcísio não vai romper com Bolsonaro e fará sempre acenos, como hospedá-lo no Palácio dos Bandeirantes. Bem como fará gestos para a base ideológica. Aliás tem feito isso, quando anistiou as multas da pandemia ou quando homenageou Erasmo Dias, uma figura que remete aos anos de chumbo dos tempos da ditadura. 

Resta perguntar: e Bolsonaro, romperá com o governador de São Paulo? Difícil, muito difícil.

Uma coisa é certa. O governador manterá seu plano de voo. Inclusive para a disputa da prefeitura da capital paulista. Está convencido de que uma candidatura “puro sangue”, tipo a de Ricardo Salles, levará a uma derrota fragorosa, podendo facilitar a vitória da esquerda, via Guilherme Boulos. É isso. Tarcísio não polemiza publicamente com seu criador, mas fará o que acha que tem de ser feito.

Olhando para o horizonte de 2026, dificilmente a agenda ideológica terá o mesmo peso da última disputa presidencial. Isso vai requerer da direita ter um discurso voltado para a maioria dos brasileiros, no sentido de responder às suas necessidades. Dito em outras palavras, vai ter de se direcionar ao centro, se quiser ter viabilidade eleitoral, e não ficar confinada ao gueto ideológico ultrarradical.

A encruzilhada na qual se encontra tem prazo de validade. Já nas eleições municipais do próximo ano a direita terá de escolher qual dos dois caminhos vai seguir. Em algum momento vai ser cobrada para romper o cordão umbilical que a liga a Bolsonaro.

O passado está de volta

Governo Lula repete na Petrobras o modelo que deu origem ao petrolão

Por Hubert Alquéres

A poderosa Federação Única dos Petroleiros sempre teve forte influência nos governos petistas em relação aos rumos da Petrobras. Com acesso direto ao gabinete presidencial e umbilicalmente ligada ao Partido dos Trabalhadores, dava várias cartas. E um veto da FUP poderia inviabilizar nomeações de diretores e gerentes da estatal ou mesmo provocar demissões na estrutura de comando. Esse poder foi interrompido com o escândalo do Petrolão.

A Lei das Estatais de 2016, criada para combater a corrupção e gerar um ambiente mais seguro e transparente para as operações das empresas estatais no Brasil, bem como um novo sistema de compliance, blindaram a Petrobras de ingerências e nomeações políticas. O novo arranjo institucional foi fundamental para a recuperação e saneamento financeiro da companhia, na época a petroleira mais endividada do mundo. Sua situação caótica deveu-se ao loteamento político, à corrupção e a investimentos daninhos ao interesse nacional, como a compra da refinaria Pasadena e o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro.

A Lei das Estatais instituiu travas que também foram capazes de resistir às incursões de Jair Bolsonaro para nomear gestores comprometidos com a alteração da política de preços dos combustíveis ou para colocar aliados em áreas estratégicas da   petroleira.

O passado parecia soterrado. Mas não estava. Volta agora no terceiro governo Lula, com a FUP cobrando demissões em diretorias da Petrobras, sob o argumento de que dois gerentes “seriam bolsonaristas”. A incursão da FUP é a ponta do iceberg de um processo bem mais amplo de desconstrução do arcabouço responsável por livrar a petroleira de injunções políticas e do assalto ao seu patrimônio.

No final de outubro, a diretoria retirou do estatuto da empresa artigos que proibiam indicações políticas para seu quadro de gestores. Tais artigos já faziam parte da Lei das Estatais, mas a empresa decidiu inseri-los em suas normas para reforçar sua proteção em relação à voracidade de parlamentares, dirigentes partidários, sindicalistas e empresários. Sem essas restrições, até mesmo fornecedores e consultores poderiam ocupar postos de mando, mesmo em casos evidentes de conflito de interesses.

A porteira da Petrobrás já tinha sido escancarada em março, quando o então ministro do STF Ricardo Lewandowski concedeu uma liminar, suspendendo a Lei das Estatais. O ministro estava às vésperas de sua aposentadoria. Amigo íntimo de Lula, foi o mais fiel aliado do presidente no STF, em todos os seus mandatos. Sua decisão atendeu a um pedido do PC do B, aliado histórico de Lula e do PT. Lewandowski argumentou que a lei restringia direitos de políticos de serem nomeados para cargos em empresas estatais. Foi mais uma decisão monocrática a se arrastar, sem o pleno da Suprema Corte se pronunciar sobre o tema.

Inegavelmente, sua decisão monocrática caiu como uma luva para o mundo da política. Lula viu-se de mãos livres para nomear três conselheiros, cujas indicações são objeto de contestações na justiça, por ferir a Lei das Estatais. “Coincidentemente”, a alteração do estatuto da Petrobras para incorporar a liminar de Lewandowski atendeu a um pedido de um desses conselheiros contestados: Sérgio Rezende.

A possibilidade da diretoria da Petrobras voltar a ser loteada entre os partidos da base governista é real. Depois de conquistar o controle da Caixa Econômica, o “Centrão” pleiteia agora uma diretoria da empresa. Não duvidem se for aquela que fura poços, objeto de desejo destes os tempos de Severino Cavalcanti. 

Não se deve subestimar a avidez do Partido dos Trabalhadores para abocanhar cada vez mais nacos importantes do aparato estatal. A Petrobras é uma espécie de joia da coroa. O PT já tem o presidente da empresa e vai querer ocupar novos espaços. A liminar Lewandowski aplainou o terreno para o restabelecimento da aliança entre sindicalistas, PT, partidos aliados e empresários ansiosos para voltar a mamar nas tetas da estatal. Esse bloco pariu o Petrolão, como prova o livro A Organização, de Malu Gaspar.

Outros fantasmas do passado rondam a maior empresa brasileira. Seu presidente, Jean Paul Prates, promete lotar de obras os estaleiros nacionais, todos à beira da falência. É o retorno da velha política de instrumentalização da Petrobras, uma empresa de economia mista, com fins de turbinar políticas governamentais. O custo disso, como foi no passado, será a aquisição de navios e plataformas produzidas internamente por valores bem superiores aos praticados no mercado internacional, gerando prejuízos para seus acionistas.

Prates acena com uma nova versão da famigerada Sete Brasil, criada no segundo mandato de Lula por fundos de pensão, a própria Petrobras, bancos e empresários. Boa parte de seus diretores vinham do quadro de profissionais da petroleira. Entre eles um ficou famoso, Pedro Barusco. Braço direito do então diretor Renato Duque, operador do PT no escândalo do Petrolão, Barusco admitiu seus crimes e devolveu cem milhões de dólares à Petrobras, em decorrência do acordo de sua delação premiada.

A Sete Brasil nasceu com um contrato biliardário com a Petrobras, de construir 28 sondas de última geração. Entregou pouquíssimas, apenas cinco entraram em operação. O contrato seria a salvação da lavoura para os estaleiros brasileiros. O governo vivia o delírio de “conteúdo nacional” nas compras da companhia. A Sete envolveu-se até a medula no escândalo do Petrolão e em 2016 entrou em recuperação judicial, reconhecendo uma dívida de 18 bilhões de reais.

A Petrobrás saiu da Sete, mas não se livrou de seu carma. Há cinco anos seu Conselho debate se indeniza ou não a Sete Brasil. Em outubro, a Justiça do Rio de Janeiro abriu caminho para responsabilizar a estatal pelos prejuízos da Sete Brasil.

A ideia do presidente da Petrobras, amparada pelo governo Lula, embute a determinação de repetir erros do passado. O caldeirão que gerou o Petrolão pode estar de volta.

Enem destila preconceito contra o agronegócio

Uso ideológico da prova pode redimir as estultices do governo anterior e fazer reviver o movimento escola sem partido.

Por Hubert Alquéres

Três questões da prova do Enem escancararam a visão ideológica da esquerda sobre a questão agrária no Brasil. Nela, o agronegócio é o grande vilão, responsável por todos os males, como o desmatamento da Amazônia ou a exploração dos “camponeses” no Cerrado.

O exame condena ainda o desenvolvimento capitalista no campo, acusando-o “de subordinar homens e mulheres à lógica do mercado” e de promover a “pragatização de seres humanos e não humanos, a violência simbólica, a superexploração”.

A estupidez dessa “pragatização dos humanos e não humanos” é tamanha que pode redimir as estultices do governo anterior e fazer reviver o movimento escola sem partido. Essa esquerda incrustada no INEP não é contra as vacinas e nem defende a famigerada educação domiciliar mas também possui suas terraplanices. Vale lembrar que o INEP é a instituição que organiza o Enem e está ligada ao Ministério da Educação comandado pelo ex-governador do Ceará, Camilo Santana.

Temos aí um sério problema que é o de dar força e voz àqueles educadores que adoram substituir a ciência por falácias e ideologia.

No caso concreto, o Enem ignora as especificidades do processo de modernização do nosso campo que, diferentemente dos países europeus, se desenvolveu não por meio de uma reforma agrária. Trabalha ainda com categorias sociológicas ultrapassadas, que não se aplicam mais ao Brasil. 

Assim, confunde a grande propriedade agrícola moderna e produtiva com o latifúndio de baixa produtividade ou improdutivo. Esses sim, passíveis de desapropriação para fins de uma reforma agrária. Já há bastante tempo o latifúndio é uma espécie em extinção, o que explica a pouca oferta de terra para fins de reforma agrária. Ele existe hoje em áreas ainda não plenamente integradas ao desenvolvimento capitalista, portanto ao que se denomina agronegócio.

No Brasil contemporâneo a reforma agrária é cada vez mais uma questão de justiça social do que um imperativo para o desenvolvimento capitalista. Mas o Enem se deixou contaminar pela velha visão da esquerda dos anos 50/60, segundo a qual o imperialismo e o latifúndio eram os dois grandes fatores impeditivos do desenvolvimento no Brasil.

O Enem partiu, portanto, de uma visão que não explica a realidade do desenvolvimento agrário no Brasil. Ele gerou uma complexa, moderna e admirável cadeia produtiva, constituída por grandes, médios e pequenos produtores plenamente integrados ao mercado. Nacional e mundial.

O próprio Cerrado, objeto da questão 89 da prova do Enem, desenvolveu-se graças ao papel desempenhado pelo Estado via a atuação da Embrapa. Só que sem a engenharia genética e a biotecnologia o Cerrado não teria se constituído em um grande produtor de grãos e não teria uma agricultura pujante.

Não se nega a existência de questões ambientais e sociais no agronegócio a serem enfrentadas. Sua própria inserção nas cadeias produtivas globais torna isso uma necessidade. Cada vez mais o mercado mundial tem a sustentabilidade como um critério fundamental para o ingresso de produtos em sua esfera. Quem não atender a tal requisito, perderá mercado. O moderno agronegócio, onde o capitalismo está plenamente estabelecido percebeu isso já faz tempo.

Reconhecer problemas não autoriza uma visão preconceituosa e distorcida sobre a realidade de nossa agricultura.

O agronegócio é hoje o setor mais dinâmico da economia brasileira, responsável por 24,4% do Produto Interno Bruto do país e de forma sustentada tem obtido ganhos de produtividade. O Brasil participa de forma importante na cadeia produtiva mundial do agronegócio e daí pode sair a acumulação de capital necessária para uma possível reindustrialização do país, em áreas mais modernas e estratégicas nas cadeias globais de produção.

O Enem nasceu para aferir as habilidades e competências de nossos alunos, para saber o quanto estão preparados para o ingresso no mercado de trabalho ou no ensino superior. É hoje o principal exame para o acesso ao ensino universitário, impactando a vida e o futuro de milhões e milhões de jovens. É essencial mantê-lo fiel à sua missão, despindo-o de qualquer viés ideológico. De direita ou de esquerda.

Toda vez em que a ciência é substituída pela ideologia, atrofia-se o processo de aprendizagem e transmite-se uma visão distorcida da realidade, com impacto negativo na formação e no futuro profissional de nossos jovens.

A liberdade de cátedra é um valor a ser preservado, inclusive na formulação das questões do Exame Nacional do Ensino Médio. Ao governo cabe evitar intervenções no conteúdo das provas, criando mecanismos técnicos que evitem situações tendenciosas. Também deve melhorar a qualidade da formação dos professores nos cursos de licenciatura espalhados pelo país na modalidade à distância.

Só assim teremos um Enem pautado em questões exclusivamente técnicas e científicas e não no credo político ou ideológico de quem formula suas questões.

Um gigante da cultura

Assim como Ulysses Guimarães foi o Senhor Diretas, Danilo Santos de Miranda foi o Senhor Cultura. Devemos a ele a criação do maior e melhor modelo de fomento para o setor. E que deveria servir de referência para políticas públicas do país, de exemplo para secretarias estaduais, municipais e o próprio Ministérios da Cultura.

Danilo transformou o Sesc/SP, entidade que comandou por quarenta anos – maior centro de irradiação de cultura e de formação de jovens em quase todos os campos. No cinema, na música, no teatro, na dança, nas artes plásticas, nos esportes. Também envolveu escolas públicas, alunos e professores, nas mais diversas atividades promovidas pela instituição.

Sob sua batuta, o Sesc se transformou na maior potência cultural do país. Danilo não criou um projeto piloto, de pouco alcance, mas uma rede com capilaridade no Estado, oferecendo ao grande público lazer, educação, esporte, alimentação e, claro, cultura de qualidade. Mais: seu modelo se voltou para as grandes massas, atuando como centro de excelência em áreas periféricas e cidades carentes de espaços públicos e onde o Estado não se fazia presente.

A grandiosidade de sua obra se traduz em números. Mais de 15 milhões de pessoas frequentaram as unidades do Sesc paulista, em 2022. Esse mar de gente pode usufruir dos 21 teatros da instituição, espaços de exposições, 89 piscinas, 123 ginásios, 38 bibliotecas e das 95 salas de ginásticas do maior complexo cultural-educativo do país. Das 41 unidades existentes, 26 foram construídas na gestão Danilo Miranda. Em maio, ele anunciou a construção de mais doze unidades. Os números são impressionantes, só no ano passado, foram realizadas 77 mostras, exibidos cerca de 1.500 filmes e aconteceram cerca de seis mil apresentações artísticas.

No último domingo e aos oitenta anos, esse gigante da Cultura nos deixou. Foi um exemplo de vida, dotado de uma visão holística da cultura, que, nas suas palavras “vai além do mundo das artes: ela cuida da inserção do ser humano no mundo”. E entendeu a cultura como parte do processo educacional. Aliás, não se cansava de repetir: “educação e cultura são elementos vitais, são os que nos torna humanos.” Na sua visão dialética, educação é cultura e cultura é educação, ”São como irmãos siameses”.

Danilo Santos de Miranda era, antes de tudo, um humanista, cujos valores permearam toda uma vida comprometida com a justiça social e o enfrentamento das profundas desigualdades da sociedade brasileira.  Essa consciência veio dos seus tempos de seminarista e de militância estudantil de antes de 1964, quando foi contemporâneo do então presidente da União Nacional dos Estudantes, José Serra e de Frei Beto. 

Tempos depois, essa consciência o levaria a entender a cultura, a atividade física, a educação e o lazer como importantes ferramentas para a redução das desigualdades.  Ao longo das quatro décadas à frente do Sesc, levou a instituição a se abrir para a agenda contemporânea, abordando por meio de diversas atividades questões como racismo, diversidade de gênero, direitos LGBTQIA+, respeito e valorização dos povos originários.

Não cedeu a pressões de protestos que tinham como objetivo impedir a palestra no Sesc Pompeia da filósofa queer Judith Butler, referência em estudos de gênero. Habilidoso, contornou as resistências da instância decisória das políticas institucionais, em ambiente de valores predominantemente conservadores. Danilo Miranda tinha jogo de cintura suficiente para colocar temas sensíveis dentro da instituição sem causar instabilidades e crises.

Com tantos serviços prestados à cultura e ao país, é de se estranhar que não tenha sido ministro da Cultura. Qualificação para o cargo não lhe faltava. Seu nome sempre foi especulado, mas formalmente nunca foi convidado, apesar das várias sondagens. Em todas as eleições era consultado por candidatos das mais diversas colorações políticas. Jamais se recusou a dar suas contribuições. Independentemente de suas convicções políticas, falava mais alto a causa da Cultura.

Sob seu comando, o Sesc foi uma espécie de Ministério da Cultura informal, exemplo da boa utilização de recursos públicos. Como ele mesmo dizia, daí nasceram dezenas de modelos de ações que se tornaram políticas públicas. A jornalista Fernanda Mena o definiu como uma mistura de mecenas com ministro da Cultura. Foi bem mais. Foi um organizador da Cultura, um ser humano que amava e apostava no Brasil.

No ano passado, a atriz Zezé Mota perguntou: “O que seria das artes no Brasil sem o Sesc?”

Agora é o caso de se indagar: o que será da cultura sem Danilo dos Santos Miranda, o seu maior incentivador?