Educação em Cuba

Escola Vladimir Ilich Lenin, Cuba, 1971 (Foto: Divulgação)Escola Vladimir Ilich Lenin, Cuba, 1971 (Foto: Divulgação)

por Hubert Alquéres

Que fique claro: ditaduras não se justificam em nome dos avanços sociais e muito menos são pré-condições para tais conquistas. Não há, portanto, nenhum sentido em absolver Fidel Castro e o seu regime sobre o pretexto de a revolução cubana ter promovido a “igualdade”.

Na vizinha Costa Rica, a revolução de 1948 obteve enormes avanços na educação e na saúde e dissolveu seu próprio exército revolucionário. A Costa Rica, coração civil, nunca deixou de realizar eleição presidencial livre e limpa a cada quatro anos e sua capital é a sede da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Detalhe: o salário médio no país é 15 vezes maior do que o de Cuba, seu PIB e renda per capita são os mais altos da região.

Temos ainda o exemplo da Coreia do Sul, um país atrasado até os anos 50 e hoje com um IDH bastante alto – o 15º do mundo. A Coreia passou por períodos ditatoriais, mas é uma democracia liberal desde 1987. A educação foi a grande alavanca para alcançar o status de ser o país mais inovador do planeta.

Vamos para a educação cubana.

Há alguns anos fiz parte de uma delegação brasileira de gestores da rede privada do ensino em visita a Cuba para conhecer como era a educação no então único país socialista do continente americano.

Chamou atenção o fato de Cuba ter erradicado o analfabetismo (no final da década de 80 a taxa de analfabetismo no Brasil ainda era de 20% da população de 15 anos ou mais) por meio de ampla mobilização, em que para alfabetizar não era necessário ser professor. Quem sabia ler e escrever ensinava a quem não sabia.

A maioria das escolas que visitamos padecia de recursos, funcionava em prédios improvisados, sem manutenção e com deficiência de iluminação. Mas tudo isto era compensado pela alta motivação dos educadores e educandos, o que faz toda a diferença nos resultados colhidos.

Na Escola Lenin de Ensino Médio, a melhor do país, dotada de equipamentos modernos para a época, exibia a contradição entre um ensino de forte conteúdo e o dirigismo ideológico. Os alunos eram campeões mundiais nas olimpíadas de matemática ou física, eram exímios no xadrez, mas o ensino de história era totalmente tendencioso e priorizava acontecimentos cubanos e soviéticos. Na biblioteca havia um grande volume de livros, mas não se encontrava os que mostravam a produção cultural ou científica do mundo ocidental.

Até hoje nem tudo pode ser ensinado nas salas de aula, o diálogo deve ser monitorado e o senso crítico, com a confrontação das verdades estabelecidas, é reprimido. Evidente que à juventude cubana não é dada a possibilidade de viver uma natural fase de experimentação, ou de considerar caminhos alternativos, comportamentos diferentes. E nem mesmo questionar influências familiares, sociais ou culturais.

Choque mesmo tivemos ao visitar uma escola exclusiva para crianças com surdez. A falta de recursos saltava aos olhos, mas era impossível não se emocionar com a dedicação dos professores que faziam milagres. Os alunos, todos pequenos, conseguiam falar e expressar ideias com grande fluência. A frustração veio logo seguir, quando, a pedido dos professores, em uníssono afirmaram: “todas as crianças de Cuba querem ser como Che Guevara”. Foi a constatação de que o sistema educacional da Ilha reproduz até hoje o culto à personalidade de seus “deuses”; ignora a sentença do dramaturgo Bertold Brecht: “triste de um povo que ainda precisa de heróis”.

O pensamento único impede o debate de ideais, não respeita o diferente, impõe uma educação incapaz de ensinar a conviver com a diversidade, seja ela de natureza religiosa, política ou de gênero. É impensável, por exemplo, que seja abordado em suas salas de aula o tema da homofobia. Sem o direito à privacidade, sacrifica-se também a liberdade de expressão.

E tudo isso é consequência da ditadura.

Não há, portanto sentido algum em se fazer hagiografia e genuflexão diante de ditaduras, ainda que se digam “benéficas”.

___________________________________________________________
Este artigo foi publicado originalmente no site do jornal O Globo, no Blog do Noblat:

A onda “nacional-populista”

Populismo (Foto: Arquivo Google)

por Hubert Alquéres

O início do século 21 foi marcado por uma nova onda populista na América Latina, de corte anti-imperialista, terceiro-mundista, voltada para as massas de descamisados não incorporadas ao mercado de consumo, marginalizadas do processo de globalização. Apesar de ser um fenômeno regional, o bolivarianismo nas suas diversas vertentes – chavismo, lulopetismo, kirchnerismo, entre outros – virou referência para a esquerda, como nova via para o socialismo e alternativa à mundialização da economia. A onda entrou em colapso, com a explosão da bolha das commodities, que as financiava.

O populismo como resposta transversa aos efeitos “perversos” da globalização ressurge agora com toda força, nas nações centrais da economia mundial – Estados Unidos e países da Europa – com roupagem nacionalista radical, pregando ordem, xenofobismo e racismo.

Não é a primeira vez na História que isso ocorre em momentos de crises econômicas e de instituições da democracia representativa. O fascismo e o nazismo chegaram ao poder como alternativa à crise sistêmica dos anos 20/30, que desaguou na Segunda Guerra Mundial.

O nacional-socialismo, na sua ala mais radical representada pelos irmãos Strasser, membros do Partido Nazista e rivais de Adolf Hitler, adotou um discurso anticapital financeiro. Assim como a extrema direita de hoje vocifera contra a internacionalização da economia, contra o sistema financeiro e os fóruns multilaterais do concerto de nações.

São contextos históricos absolutamente diferentes, daí a importância de não se absolutizar a comparação entre a ascensão do fascismo nos anos 30 e a emergência da “nova direita” nessa segunda década do século 21. Mas há semelhanças, particularmente em relação à sua argamassa ideológica.

Se os excluídos foram a base social do populismo de esquerda do início do século, os desincorporados são a base de sustentação da atual voga nacional-populista. A região de Lorraine, na França, está para Marine Le Pen assim como os estados do “cinturão da ferrugem” esteve para a vitória de Donald Trump.

O sucateamento de sua indústria pesada e a concorrência internacional engoliram milhões e milhões de empregos e de renda. No caso da França, a perda foi de 1,4 milhões de postos de trabalho na indústria, nos últimos 25 anos. Não é um fenômeno isolado. Na União Europeia, a mão de obra industrial caiu de 27% para 23% do total de empregos, desde a crise de 2008 até 2014.

A globalização trouxe enormes ganhos, maior eficácia econômica, incremento extraordinário da produtividade, barateamento dos produtos, avanços tecnológicos extraordinários em todas as áreas, hiperconectividade, fim da bipolaridade. Mas se deu de forma desregulamentada, sem distribuição da riqueza gerada. Ao contrário, concentrou-a nas mãos das grandes corporações financeiras e industriais. Não constituiu, em escala planetária, uma rede de proteção social.

Ainda serão necessários muitos estudos para entender porque a velha classe operária, da qual se originaram os partidos socialistas, socialdemocratas e comunistas, apoia Trump, Marine Le Pen na França, Nigel Farage, principal liderança do Brexit, o Movimento Cinco Estrelas do comediante italiano Beppe Grillo, Geert Wilders, líder das pesquisas para a próxima eleição parlamentar da Holanda, defensor da “deslamização” do país, e Norbert Hofer, da Aústria, que pode ser eleito chefe de estado na eleição de 4 de dezembro.

O pano de fundo de uma guinada tão profunda é a desindustrialização, um processo que teve início na Europa com a queda do muro de Berlim, com as indústrias se deslocando para os antigos países do socialismo real, onde a mão de obra é mais barata, principalmente a China.

A crise de representação e da política formal, partidos, sindicatos, entre outros, jogou água para o moinho da direita “outsider”, até porque experiências à esquerda de uma nova forma de se fazer política – Syriza na Grécia e Podemos na Espanha – não lograram êxito, ao menos por enquanto.

O populismo da extrema direita fica evidente em suas palavras de ordem: “o povo contra as elites”, na campanha do Brexit; “em nome do povo”, slogan de Marine Le Pen; bem como na recente campanha de Donald Trump, pautada no discurso do “nós x eles”, contra o “sistema”, com o seu “make America great again!”. Os “inimigos” são o livre comércio, os imigrantes, os estrangeiros, os diferentes, os “outros”- uma figura vaga e difusa.

Quanto tempo levará para o nacional-populismo se esgotar não se sabe. Mas passará. Afinal, a morte da democracia liberal foi decretada várias vezes, e ela sempre voltou com força.

_________________________________________________________________

Este artigo foi publicado originalmente no site do jornal O Globo, no Blog do Noblat:

http://noblat.oglobo.globo.com/artigos/noticia/2016/11/onda-nacional-populista.html

 

O que faz falta

Reforma política (Foto: Arquivo Google)

por Hubert Alquéres

Na semana em que a República completa 127 anos, o Senado Federal acaba de aprovar em primeiro turno a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que trata da reforma partidária e estabelece, entre outros dispositivos, a chamada cláusula de barreira.

Com a derrocada do lulopetismo nas últimas eleições, o impeachment da presidente Dilma Rousseff e a avanço implacável da operação Lava Jato, a reforma política no Brasil dá sinais de que pode vingar. E com ela podem surgir regras mais restritivas para que os partidos tenham direito de acesso aos recursos do Fundo Partidário e à programação eleitoral no rádio e TV. Medida crucial para reduzir o exagero de o país ter nada menos do que 35 partidos registrados, muitos deles só para se beneficiar de recursos públicos. Outros tantos, mais de 30, já solicitaram registro no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

O Partido dos Trabalhadores, claro, se colocou contra a PEC. Alega que vai se manter solidário e defender os partidos nanicos e estridentes de esquerda, seus aliados tradicionais.

Nos países de democracia consolidada é absolutamente natural a existência de partidos fortes e com perfis ideológicos claramente definidos: de esquerda e de direita. Também é natural a alternância de poder entre estas forças opostas. E não há problema algum em ser de direita ou de esquerda. Políticos chamados conservadores deram importantes contribuições a seus países e ao mundo. Charles de Gaulle na França, Konrad Adenauer na Alemanha, Winston Churchil, na Inglaterra, e tantos outros. O mesmo ocorre com a turma progressista.

No Brasil faz falta a existência de partidos verdadeiramente comprometidos com os valores republicanos. Não se vê força alguma na defesa intransigente e permanente de uma organização democrática, com sistema verdadeiramente representativo e garantias constitucionais. Certamente a cultura política nacional estaria muito mais avançada se os homens públicos de hoje se empenhassem em fortalecer as instituições. Mas o que se vê são práticas que corroem as instituições por dentro, guiadas exclusivamente por ambições pessoais.

Temos um modelo perverso de governabilidade, baseado em traços comuns entre a esquerda autoritária, o centro pantanoso e a direita fisiológica: o patrimonialismo deslavado e a corrupção generalizada.

Esta lógica no Brasil fortaleceu a geleia ideológica, argamassa do assalto, sem limites, aos cofres públicos.

É verdade que, nos últimos 13 anos, o patrimonialismo, o fisiologismo e a corrupção não foram exclusividade de uma ou outra corrente. Com raras exceções, partidos e políticos tidos como de direita, esquerda ou de centro se esbaldaram nestas práticas.

Ao chegar ao poder, partidos da esquerda autoritária aderiram e inovaram na ação antirrepublicana, como ficou patente nos episódios do mensalão e do petrolão, investigado na Lava-jato. Temos, no Brasil a maléfica simbiose entre a esquerda totalitária com partidos e políticos historicamente fisiológicos.

A degradação ideológica levou a isto: o embate não é mais entre esquerda e direita, mas sim entre forças patrimonialistas e forças republicanas.

A lógica binária direita versus esquerda é pequena. Não explica uma realidade mais complexa. Existem esquerdas autoritárias e esquerdas democráticas. Assim como pode haver direita patrimonialista e direita republicana.

A reforma política é necessária não só para reduzir número de partidos, mas para dar coerência de valores e princípios aos que se consolidarem. Sejam de esquerda ou de direita.

É isso que faz falta.

________________________________________________________________

Este artigo foi publicado originalmente do site do jornal O Globo, no Blog do Noblat:

http://noblat.oglobo.globo.com/artigos/noticia/2016/11/o-que-faz-falta.html

 

Tão jovens, tão velhos

Educação Superior (Foto: Arquivo Google)

por Hubert Alquéres

Daqui a 20 ou 30 anos, quando as salas de aula pouco terão a ver com os dias de hoje, historiadores e pesquisadores que se debruçarem sobre o atual movimento de ocupação das escolas, em protesto contra a reforma do ensino médio, vão entendê-lo como algo tão anacrônico como a Revolta da Vacina de 1904.

Na época, por desinformação e ignorância, a Escola Militar e boa parte da população do Rio de Janeiro se sublevaram contra a vacinação obrigatória, forçando o governo de Rodrigues Alves a decretar estado de sítio na cidade. Medida dura, mas o sanitarista Oswaldo Cruz estava certo. Só assim a epidemia de varíola foi extinta no Rio de Janeiro.

Em defesa da Revolta da Vacina pode-se arguir que o grau de informação era precário, pois os meios de comunicação praticamente se resumiam aos jornais e a maioria da população era analfabeta. A ignorância é a mãe do obscurantismo, de movimentos regressistas como o de Canudos de Antônio Conselheiro.

O mesmo não se pode dizer sobre os dias atuais. Os modernos meios de comunicação democratizaram as informações, hoje acessíveis a todos, inclusive à minoria que ocupa as escolas. As mazelas do ensino médio são sobejamente conhecidas, tanto por educadores como por quem sofre na pele as suas consequências, os estudantes e pais de família.

O problema maior não é a ocupação das escolas, embora seja uma forma de luta estapafúrdia e antidemocrática por meio da qual uma pequena parcela impõe seu ponto de vista a milhões e milhões de outros jovens impedidos de frequentar as aulas.

Não é apenas uma questão de forma. É, principalmente, um problema de conteúdo. O movimento ocupacionista é essencialmente reacionário, no sentido de ser contrário a ideias transformadoras. Leva, concretamente, à manutenção do status quo do nosso sistema educacional, perpetua o pacto da mediocridade, onde parte dos professores finge que ensina e parte dos alunos finge que estuda.

Parece não darem conta que o mundo se move e com ele a educação.

No Colégio Bandeirantes, tradicional escola particular de São Paulo, da qual faço parte, as barreiras literalmente estão sendo derrubadas. Em 2017 não haverá mais divisão rígida por disciplina, as aulas de laboratório de física, química, biologia e artes acontecerão em um mesmo espaço, com professores de várias áreas interagindo simultaneamente. A palavra-chave é interdisciplinaridade. Será adotado um “currículo escolar flexível” (como propõe a Medida Provisória da Reforma do Ensino Médio) com vistas a permitir ao aluno a seleção de algumas disciplinas nos quais queira se aprofundar, conforme sua vocação.

Não pensem ser um caso isolado. As boas instituições do ensino privado brasileiras trilham o mesmo caminho, pois a escola que não se reinventar desaparecerá do mercado ou terá peso pena.

As mudanças chegam também ao ensino fundamental. Os centros de excelência da rede privada começam a focar no desenvolvimento dos aspectos não cognitivos dos alunos, no incentivo à capacidade de liderança, na relação entre o todo e as partes, na pesquisar com espírito crítico e na capacidade analítica.

E não o fazem por modismo, mas por necessidade do país em ter cidadãos mais preparados, em especial, o mercado de trabalho, que requer hoje um profissional com qualidades inteiramente diferentes da época do chão de fábrica.

Vem sendo ditada também por instituições de ponta do ensino superior, que avaliam os chamados conhecimentos não cognitivos, em seu processo seletivo. Isso já acontece na seleção das conceituadíssimas Faculdade de Medicina Albert Einstein, Faculdade de Engenharia do Insper  na Escola de Administração da Fundação Getúlio Vargas.

Mais: vislumbra-se no horizonte uma importante alteração no exame internacional PISA – OCDE, principal instrumento de avaliação do ensino no mundo, que pauta políticas educacionais em vários países. Sim, o PISA deve passar a agregar aspectos não cognitivos em futuras avaliações.

A transversalidade, o currículo flexível, a mudança da arquitetura das salas de aulas, a valorização de habilidades que farão a diferença na vida futura dos alunos, os trabalhos por projetos, a combinação do ensino presencial e à distância estão sendo impleantadas em países de ponta: Estados Unidos, Canadá, Finlândia, entre outros.

Cedo ou tarde, o Brasil terá de acompanhar este movimento. O preocupante hoje é que as escolas privadas de boa qualidade já estão acertando o passo, enquanto na rede pública o corporativismo, a ideologia, a má fé e a ignorância operam para aprofundar o fosso da desigualdade social, condenando nossa juventude ao atraso.

Involuntariamente, ou não, o movimento de ocupação das escolas faz esse jogo.

_______________________________________________________________

Este artigo foi publicado originalmente no site do jornal O Globo, no Blog do Noblat:

http://noblat.oglobo.globo.com/artigos/noticia/2016/11/tao-jovens-tao-velhos.html

 

O que as urnas renegaram

Reforma política (Foto: Valdo Virgo)
Arte: Valdo Virgo

 

por Hubert Alquéres

Como sempre, o pronunciamento dos eleitores propicia diversas e opostas interpretações, todas com um fundo de verdade. O PSDB solta fogos por ser o maior vitorioso nas urnas, o presidente Michel Temer respira aliviado por 80% dos prefeitos eleitos serem de sua base de sustentação e o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, se projeta para 2018 como o tucano mais competitivo.

No outro extremo sobram avaliações cinzentas: uns dizem que o Brasil deu uma brutal guinada à direita, com uma onda conservadora varrendo o país, de ponta a ponta. Para outros, a eleição teria sido a própria negação da política, tanto pela via do “niilismo” – abstenção, votos nulos e brancos – como pela via do candidato “não político”.

Há um toque de ligeireza, superficialidade e pedantismo nessas conclusões. O recado das urnas ainda não está devidamente assimilado.  Pode estar havendo uma baita confusão sobre o chamado desencanto com a política.

Para entendê-lo, é necessário mergulhar no tempo, ir até as jornadas de 2013, quando os brasileiros expuseram sua insatisfação quanto à secular ineficiência dos serviços públicos e as anacrônicas instituições político-partidárias, inteiramente descoladas do cotidiano das pessoas.

O “sem partido” de 2013, grito das ruas não entendido pela esquerda tradicional, transformou-se no “eles não me representam”, no voto nulo, em branco, na abstenção ou na sua contraface, o voto no “não político”.

Os anos dourados do lulopetismo geraram uma ilusão. Nossos serviços públicos continuavam sendo da época da pedra lascada, o modelo político perpetuava as iniquidades. A crise de representatividade – partidos, sindicatos, movimentos sociais formais – começa a saltar aos olhos com o advento da hiperconectividade, com o fim das bipolaridades, com a transversalidade e tangibilidade das bandeiras.

Em certo sentido, um fenômeno mundial, agravado no Brasil pelo modelo de presidencialismo de coalisão, pautado na repartição do botim da coisa pública, e pela pura e simples cooptação de centrais sindicais, UNE, MST e outros dinossauros.

Mas o “distributivismo” subsidiado pelas commodities escondia tudo. Quando a fonte secou, o lodo veio à tona.

Em 2014, vimos um país dividido ao meio, com o lulopetismo ganhando uma sobrevida que não resistiu à hecatombe que se seguiu.  Havia, já na última disputa presidencial, o desejo de mudar, mas o medo falou mais alto.

Sim, a eleição de 2016 é a de mudança de paradigmas. A seu modo, o eleitorado superou a bipolarização que vinha dando o tom da política brasileira desde a última década do século XX, suprimindo, pura e simplesmente, um de seus polos: o PT.

O que fará com o outro polo, vai para a rubrica de médio prazo. Depende de qual será o desempenho do PSDB e dos vitoriosos, se eles corresponderão à agenda demandada pelas urnas, ou se provocarão novas frustrações. Só há uma certeza: a fatura será cobrada em 2018.

Os eleitores não renegaram a política. Renegaram essa política que está aí.

O protesto das urnas – ou de quem nela sequer compareceu – tem o sentido de que não basta apenas uma reforma política no sentido estrito do termo, de adoção de novas regras, como fim das coligações nas proporcionais, cláusula de barreira, voto-distrital, misto ou puro.

As urnas clamaram por uma nova mentalidade, uma nova cultura, uma nova forma de se fazer política. Esse é o complicômetro. As instituições são elas mesmas e os homens que as compõem também. Como mudá-las com as mesmas caras que ditam o jogo?

As categorias esquerda-direita são insuficientes para explicar o complexo pronunciamento das urnas. Verdade, pode-se pinçar aqui e ali alianças e pensamentos indicadores do campo de vários candidatos eleitos. Mas seria reducionismo atribuir aos milhões e milhões de brasileiros uma virada em direção ao conservadorismo.

Na verdade, os eleitores disseram não a tabus da esquerda, ou de sua maior parte. Eles descobriram, às duras penas, que as benesses do Estado, quando promovidas de forma insustentável, recaem sobre suas costas. Põem em risco seus empregos, sua saúde, sua família.

As urnas renegaram a política de atender as corporações em detrimento do conjunto da sociedade, de se gastar mais do que se arrecada, de rupturas de regras democráticas, como o respeito ao patrimônio público e privado.

Também abriram espaço para o Brasil enfrentar temas delicados, como meritocracia, tamanho do Estado, estabilidade no funcionalismo público e direitos iguais na aposentadoria, sem se vergar às patrulhas ideológicas.

E ainda há quem diga que os eleitores são despolitizados…

____________________________________________________________

Este artigo foi publicado originalmente no site do jornal O Globo, no Blog do Noblat:

http://noblat.oglobo.globo.com/artigos/noticia/2016/11/o-que-urnas-renegaram.html