São Paulo pode se tornar um novo front da polarização

Pretende-se que a disputa pela prefeitura de São Paulo assuma a feição de um terceiro turno entre Lula e Bolsonaro. Já na largada o próprio presidente da República empenhou-se em confiná-la a uma luta do bem contra o mal, dando ares de uma “Frente Ampla” à chapa Guilherme Boulos/Marta Suplicy. É um exagero de retórica de Lula, com o objetivo de perpetuar a polarização calcificada, marca registrada da política brasileira pós 2018. Em nada a chapa lembra a aliança Lula/Alckmin da última disputa presidencial.

Se é para traçar algum paralelo, a dobradinha Boulos/Marta está mais para uma “frente popular” dos tempos em que a esquerda marchava com uma chapa puro-sangue. Essa fórmula é dos tempos em que o PT engatinhava e se recusava a fazer política em nome dos seus belos princípios. A rigor é uma frente de parte da esquerda, uma vez que, salvo chuva, tempestade e trovoada, o PSB se mantém firme e forte na candidatura de Tabata Amaral.

Nesse particular, a frente que deu a vitória a Lula se estreitou. Tudo marcha para que Lula e seu vice Alckmin estejam em palanques opostos na disputa pela principal prefeitura do país.

Em certo sentido, a batalha eleitoral na capital paulista sempre teve um componente nacional, mas este ano o fator nacional poderá preponderar pela ação dos dois principais contendores da política nacional interessados no engessamento da política nacional.

Verifica-se no terreno da política a confirmação da terceira lei de Newton, segundo a qual toda ação provoca uma reação de igual intensidade e direção, porém em sentido contrário. Ao perceber os movimentos de Lula, o governador paulista, Tarcísio de Freitas, procurou convencer Bolsonaro de que a candidatura de um bolsonarista de raiz à prefeitura paulistana o condenaria ao isolamento. Serviria, no máximo, para marcar posição.

Assim, a estratégia adotada pelo governador e pelo prefeito de São Paulo, que disputará a reeleição, foi a de fazer Lula experimentar do próprio veneno, articulando um palanque de Ricardo Nunes bem mais amplo do que o da dobradinha Boulos/Marta. Dessa maneira nasceu a “frente ampla contra o extremismo”, para usar um termo do governador Tarcísio. Deve incomodar ao presidente da República o fato de boa parte dos partidos de sua base de sustentação estar no palanque de Ricardo Nunes, em vez de subir no de Boulos.

Sem perceber Lula pode cair na própria armadilha que montou. Com um agravante. Ao nacionalizar a eleição de São Paulo, assume o risco de ser responsabilizado por uma eventual derrota da candidatura que patrocinou. Ainda mais por que foi o ártifice para o retorno de Marta Suplicy ao ninho petista. Até outro dia, Marta participava da gestão Ricardo Nunes, como sua secretária para Relações Internacionais, a quem jurava fidelidade e se dizia amiga do peito.

Ricardo Nunes não é nenhum bolsonarista de raiz, longe disso. Seu partido, o MDB, participa do governo Lula, ocupando três ministérios. Outros partidos compromissados com o palanque do atual prefeito também ocupam ministérios importantes. Basta citar o PSD de Gilberto Kassab.

Lula assumiu o risco de desorganizar seu próprio governo, caso sua estratégia dê com os burros n’água. Derrotas costumam deixar ressentimentos que não se curam com a razão.

Se não é um bolsonarista de carteirinha, é fato inconteste que a arte da sobrevivência jogou Nunes para o colo de Bolsonaro. O vice de sua chapa será quem Jair Bolsonaro escolher. Esse é o preço a ser pago para ter os votos do eleitorado cativo do ex-presidente. Até recentemente, esses votos iam para o PSDB, sem fazer muitas concessões programáticas. Mas isso ficou para trás.

Em tempos de polarização de extremos a primeira vítima é o centro. Em certo sentido esse fenômeno já se manifestou nas duas últimas disputas presidenciais. Alckmin e Marina fracassaram em 2018. A despeito de ter feito uma boa campanha, Simone Tebet teve o mesmo destino na disputa presidencial de 2022. Essa espada paira sobre a cabeça de Tabata Amaral, uma parlamentar de mente arejada e uma das grandes promessas da nova geração de políticos. Mas como encontrar espaço em uma eleição polarizada já na largada?

É como se o centro democrático estivesse condenado ao desaparecimento, nada mais lhe restando do que a adesão a uma das duas lideranças carismáticas e populistas sobreviventes ao amergedon da política. A síndrome do PSDB ronda suas cabeças. Desde 2004, estabeleceu-se a disputa entre os tucanos e o Partido dos Trabalhadores, que se revezaram no comando da principal prefeitura do país.

Em 2016 João Doria derrotou Fernando Haddad já no primeiro turno. Em 2020 Bruno Covas derrotou, no segundo turno, Guilherme Boulos por uma vantagem avassaladora. Hoje o PSDB tem peso irrelevante nas eleições, dilacerado entre três opções: lançar candidatura própria, apoiar Ricardo Nunes ou ainda Tabata Amaral.

Em uma guerra, costuma-se dizer que a primeira vítima é a verdade. Em uma eleição municipal nacionalizada sofrem os eleitores.

Eleição municipal é, por excelência, o momento de debater as questões locais, de se conhecer as propostas de cada candidato para a cidade.

São Paulo pode pagar um preço alto por ser alçada, à sua revelia, à condição de novo front principal da polarização.

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