Uma guerra longe do fim

Quando invadiu a Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022, a Rússia tinha como estratégia alcançar a vitória por meio de uma guerra de curta duração. A enorme superioridade bélica em relação ao país invadido alimentava sua esperança de conquistar no teatro de operações três objetivos estratégicos: frear a expansão da OTAN em direção às suas fronteiras, consolidar a Crimeia como território russo e estabilizar a russificação das províncias ucranianas de Lugansk e Donetsk.

Um ano depois é visível o fracasso da blitzkrieg russa. Em vez de uma vitória rápida e de baixos custos materiais e humanos, Vladimir Putin se aventurou em uma guerra de atrito, de alto custo para os dois países beligerantes, cujo término não se vislumbra no horizonte. Cometeu o mesmo erro de Carlos XII em 1708, Napoleão em 1812 e de Adolf Hitler em 1941, quando invadiram a própria Rússia: subestimar a resistência de um povo quando sua pátria está em perigo.

Agora o invasor é a Rússia e tem diante de si a perspectiva de se envolver em uma guerra de desgaste de longa duração, a exemplo do que enfrentou no Afeganistão, nos anos 80. Historicamente uma guerra que se arrasta por largo tempo corrói a moral da tropa invasora e desgasta seu poder de combate. Vide os Estados Unidos no Vietnã. Como afirmou Joe Biden no discurso de sua visita de surpresa a Kiev, “haverá dias, meses e anos difíceis pela frente”.

A estratégia russa fez água ao desconsiderar os ucranianos como um povo, cuja comunhão de destino o molda como uma nação. Ainda que tenham pontos em comum em sua história, ucranianos e russos não são um mesmo povo e muito menos, uma mesma nação.

Putin também subestimou o quanto os Estados Unidos e a OTAN iriam fundo no apoio ao presidente ucraniano Volodymyr Zelensky. Apostou no “general inverno”, na crença de que a dependência dos países europeus em relação ao gás e o petróleo russo faria o bloco ocidental pressionar a Ucrânia a negociar uma paz palatável aos russos. A Europa sobreviveu aos rigores do inverno com a Alemanha, principal dependente do petróleo russo, diversificando seus fornecedores e suas fontes energéticas.

Mas também fracassou a estratégia dos países da aliança ocidental de asfixiar economicamente a Rússia, forçando-a a desistir da guerra. Acreditava a OTAN que o bloqueio econômico faria a popularidade de Putin despencar. Sua previsão de que surgiria uma forte oposição antiguerra, inclusive dos magnatas russos com suas fortunas bloqueadas, não se confirmou.

Em 2022 a queda do PIB russo ficou distante dos mais de 10% esperado, sendo de apenas 2,5%. Para 2023 a previsão é de um pequeno crescimento. Mesmo com o bloqueio, e vendido a preço bem inferior ao do mercado internacional, as exportações de petróleo subiram em 2022, puxadas pelas compras da China. E a inflação ficou em patamar inferior a 12%. Em abril era de 17%. Isso explica o fato do governo Putin ser aprovado por 80% da população. A maioria dos russos comprou a tese de Putin de que a guerra não é só contra a Ucrânia. É também “uma resposta ao cerco do Ocidente”.

O foco volta-se para o campo de batalha, onde o impasse está dado. A ofensiva ucraniana do outono, que tinha levado à reconquista de territórios em mãos dos russos, perdeu fôlego. E a Rússia prepara a ofensiva da primavera, avançando no Leste da Ucrânia, com vistas a controlar totalmente Lugansk e Donetsk.

A maneira de equilibrar a correlação de forças em favor da Ucrânia passa pelo maior envolvimento dos Estados Unidos e da OTAN no conflito. Por enquanto, não pelo envio de tropas, mas pelo fornecimento de tanques ultramodernos, como o alemão Leopold 2, e o norte americano Abrams.

A lógica da guerra é da OTAN ampliar sua ação, principalmente se aumentar o risco de uma vitória da Rússia. Nessa hipótese, o pleito do presidente ucraniano ao Ocidente para que sejam fornecidos aviões-caças pode vir a ser atendido. Isso daria à Ucrânia o poder de atacar território russo, levando o conflito a um novo patamar.

As eleições americanas se darão em 2024 e começarão pesar no tabuleiro geopolítico. Biden não pode disputar um segundo mandato pairando sobre sua cabeça a hipótese de uma derrota ou de um acordo humilhante para a Ucrânia. Sua passagem por Kiev teve o objetivo de demonstrar que apoiará os ucranianos “até a vitória final”. O único limite é a presença de soldados americanos no palco da guerra. O trauma do Afeganistão é forte na alma americana. Por isso, Biden prefere travar uma “guerra por procuração”.

Já Putin, isolado do Ocidente, volta-se para o Oriente, para relações com a Índia, a Arábia Saudita, o Irã, a Turquia, e sobretudo para seu principal aliado, a China. Não é da tradição do país de Xi Jinping ampliar sua influência pelo caminho bélico. Os chineses se transformaram na segunda potência mundial pela via econômica e comercial.

Mas a divisão do mundo em dois blocos pode levar a China a ter um papel mais proativo. Sintomaticamente, o secretário de Estado norteamericano, Antony Blynken, deu declarações segundo as quais os chineses avaliam fornecer armas à Rússia. A guerra da Ucrânia turbina a rivalidade estratégica entre Estados Unidos e a China, os pólos principais da “nova guerra-fria”.

O mundo ficou bem mais perigoso depois de 24 de fevereiro de 2022. Até mesmo o fantasma de um holocausto nuclear que se imaginava descartado desde a hecatombe da União Soviética voltou a pairar sobre nossas cabeças. Em seu discurso desta terça-feira, Putin anunciou a suspensão da participação russa no tratado de desarmamento nuclear, o Novo START. Sem este tratado, a humanidade pode se deparar diante de uma nova corrida nuclear.

O caminho da paz como solução para o conflito seria o mais sensato, mas está distante porque os atores que operam no campo de batalha não dão demonstrações de que estão dispostos a sentar-se à mesa de negociação.

Nem por isso a busca pela paz deve ser deixada de lado. Mas não se pode ignorar que nessa guerra há um país invasor e outro que é vítima. A Ucrânia e seu povo tem arcado com o fardo pesado de uma guerra responsável pela morte de mais de 300 mil pessoas. Cinco milhões de ucranianos se refugiaram em outros países. A economia ucraniana teve um tombo de mais de 30%. Suas cidades foram destruídas, os ucranianos perderam suas casas, seu meio-de-vida, quando não a própria vida. Mesmo assim, mantém sua firme disposição de defender o seu direito de existir como um povo e uma nação.

As Arcadas não combinam com intolerância

Em seus quase 200 anos, a Faculdade de Direito do Largo São Francisco tem larga tradição de defesa da democracia. Desde tempos imemoriais em suas arcadas respira-se liberdade. O respeito ao contraditório, a observância do pluralismo e a liberdade de cátedra são valores impregnados em suas paredes e bancadas. Seu Centro Acadêmico, o Onze de Agosto, sempre esteve na trincheira de frente das boas causas abraçadas por professores e alunos. Sua resistência à ditadura de Getúlio Vargas deu ao Largo São Francisco o título de “território livre”. E foi desse território que o jurista Godofredo leu a “Carta aos Brasileiros”, de 1977, na qual clamava pela volta do Estado de Direito e denunciava a ditadura militar.

Se há um lugar no qual deveria ser estritamente observada a famosa frase atribuída a Voltaire “não concordo com uma só palavra do que dizes, mas defenderei até o último instante o teu direito de dizê-la”, esse lugar deveria ser a faculdade de direito mais antiga do país. Não é o que pensa a atual diretoria do Onze de Agosto, empenhada em cancelar Janaína Pascoal, impedindo sua volta ao quadro docente da Faculdade de Direito da USP, quando se encerrar, em março, seu mandato de deputada estadual em São Paulo. Detalhe: ela ocupa uma cátedra por concurso, tendo direito líquido e certo de retornar ao quadro docente da instituição.

O Centro Acadêmico tomou a iniciativa de articular um abaixo-assinado contra o retorno de Janaína por suas posições políticas. Entre elas a de ter sido autora do pedido de impeachment de Dilma, juntamente com o respeitado jurista Miguel Reale Junior, ser “uma bolsonarista esclarecida” e de não ter assinado a segunda “Carta aos Brasileiros”, divulgada em onze de agosto de 2022, em defesa da democracia.

Três dos Torquemadas do Largo São Francisco são autores de um artigo no qual se propõem a definir quem “cabe e quem não cabe em nossa instituição” e se dedicam a “demolir o mito da tradição plural das Arcadas”, com o argumento que sua história “não é marcada pela pluralidade, mas sim pela exclusão”. E se vangloriam: “preciso ser intolerante com os intolerantes”, numa adaptação do olho por olho, dente por dente.

Sem dúvida, estão escrevendo uma página infeliz da história das Arcadas, que não expressa o sentimento da instituição ou de sua comunidade. É reconfortante ouvir a voz de um jurista do porte de Floriano de Azevedo Marques Neto, ex-diretor da Faculdade de Direito da USP, afirmar:

“Querer proibir que um professor reassuma sua docência, especialmente pelo fato deste docente professar ideias com as quais discordamos, para além de ferir as liberdades constitucionais, é um desrespeito à história de pluralidade que marca o Largo de São Francisco. Janaína pode representar tudo com que discordo, mas é professora e, portanto, deve ser tratada com respeito e com a tradição plural das Arcadas”.

Essa também foi a posição do atual diretor da São Francisco, o jurista Celso Campilongo, um dos articuladores da “Carta aos Brasileiros” do ano passado, e da vice-diretora, Ana Elísia Brechara: “A livre manifestação do pensamento e a liberdade de consciência garantidos pela Constituição de 1988, que se aplicam também às diretrizes das atividades intelectuais e científicas. É na trilha dos mandamentos constitucionais que garantem a liberdade de cátedra e a livre manifestação do pensamento de todos os seus docentes que a Faculdade reafirma seu compromisso continuado e inabalável com a construção da democracia e o crescente respeito às diferenças”.

Mesmo entre os alunos, a iniciativa do Onze de Agosto provocou desconforto, revelando inexistir consenso quanto ao seu teor. Louve-se a nota da Representação Discente – coletivo formado por 59 alunos eleitos anualmente e que representam o corpo discente em questões deliberativas da Faculdade de Direito/USP. Manifestaram o mesmo ponto de vista do professor Floriano de Azevedo Marques Neto, criticando o centro acadêmico por ter tomado uma posição em nome dos “dois mil franciscanos” sem consultá-los.

O fato de possivelmente expressar uma posição minoritária até mesmo entre os estudantes, não deve levar a subestimá-la. É um indicativo de que nesses tempos de polarização, a intolerância, a tentativa de supressão do debate democrático não é monopólio da extrema-direita. Com sinal trocado, setores da esquerda também o praticam. O mais grave, em um ambiente no qual não deveriam existir: o universo acadêmico.

A tentativa de cancelamento de Janaína não é um caso isolado.

O ex-senador Cristóvam Buarque também já foi vítima da mesma intolerância, quando participava, em 2017, do encontro anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. À época teve de suspender o lançamento, na UFMG, do seu livro Mediterrâneos Invisíveis porque foi hostilizado por um grupo de alunos e professores por ele ter votado favorável ao impeachment de Dilma.

Já na Universidade Federal da Bahia um grupo de alunos impediu a exibição de um documentário sobre Olavo Carvalho e, na Unicamp, o vereador Fernando Holiday, do MBL, foi impedido de participar de uma palestra sobre cotas na universidade.

Outro exemplo foram as agressões à jornalista cubana Yoani Sánchez, que ficou conhecida depois de criar um blog com críticas ao governo do seu país, quando visitou o Brasil. Em Pernambuco e na Bahia foi hostilizada por militantes de esquerda defensores da ditadura de Cuba. Em São Paulo, foi impedida de proferir uma palestra na Livraria Cultura. Vale acompanhar todo este episódio no potente filme de Rafael Bottino, A Viagem de Yoani.

Fica a pergunta: qual a diferença da intolerância praticada pela esquerda da intolerância da extrema-direita?

Voltando ao episódio mais recente. Não se trata de concordar, ou não, com o ideário político de Janaína Pascoal, mas de respeitar valores pelos quais os brasileiros lutaram tanto e de ser fiel à própria história da faculdade, sem reinterpretá-la para justificar a censura, o cancelamento, a intolerância; que não combinam com o Território Livre das Arcadas.

A modernização do Estado sob ataque

Só na segunda metade da década de 90 o Brasil iniciou um movimento de modernização do Estado, associado à estabilidade econômica. A construção do arcabouço institucional responsável por essas duas conquistas exigiu muito esforço e energia política. Resistências das mais diversas tiveram de ser enfrentadas e interesses incrustados no aparato estatal – entre eles o corporativismo e o patrimonialismo –  tiveram de ser deslocados de suas casamatas.

Hoje ninguém defende a volta do câmbio controlado, mas a gritaria foi grande quando passou a ser flutuante. Dizia-se, à época, que o governo de Fernando Henrique Cardoso estava se rendendo aos ditames do FMI e abria mão de usar a valorização da moeda brasileira como forma heterodoxa de controle da inflação.

Até o final do século 20, o Brasil também não adotava a política de meta da inflação. São contemporâneas a essas conquistas de modernização do Estado a adoção do superávit primário como âncora fiscal e a lei de Responsabilidade Fiscal. Antes, imperava a cultura da gastança sem limites, por parte do governo. 

O saldo das agências reguladores é altamente positivo. Ninguém em sã consciência deveria ignorar sua contribuição para tentar desfigurar o seu papel. Não é o que pensa o deputado Danilo Fortes, autor de uma emenda que introduz interferência política em áreas técnicas das agências.

Em 2003, Luiz Inácio Lula da Silva recebeu de FHC uma economia estabilizada e um Estado em processo de modernização. Teve o mérito de, no primeiro mandato, manter os bons fundamentos que estavam dando certo. Aliás, chegou a aumentar a meta do superávit primário, quando Antonio Palocci comandou o Ministério da Fazenda.

Os mais recentes avanços institucionais foram a Lei das Estatais e a autonomia do Banco Central. O primeiro se tornou um obstáculo para o loteamento político que, no passado recente, levou a escândalos como o do Petrolão. Já a autonomia do BC é essencial para blindá-lo de injunções políticas na definição de metas da inflação e nos remédios necessários, incluindo taxa de juros, para conter tendências inflacionárias.

Coincidentemente ou não esses dois avanços estão sob fogo cerrado. Há um forte movimento no Congresso para alterar a Lei das Estatais, com vistas a torná-la mais “flexível”.

O Lula do terceiro mandato assume o governo com uma postura bem diferente da que adotou no primeiro. Por enquanto são apenas palavras. Nem por isso menos preocupantes. Além de demonizar o mercado e alguns empresários – tal como o bem sucedido Jorge Paulo Lemann -, demonstra um especial furor contra a autonomia do Banco Central.

Diante da possibilidade de ter sua popularidade afetada pelo baixo desempenho da economia no primeiro ano do seu novo mandato, volta suas baterias contra a meta da inflação e a taxa de juros. No seu entendimento, as metas da inflação de 3,5% para este ano e 3% para 2024 deveriam ser revistas para cima, para propiciar um maior crescimento econômico.

A ideia de aceitar preços mais altos em nome do crescimento não é nova. Já nos anos 50, Inácio Rangel defendia a tese de financiar a industrialização com a inflação. 

Há quem ganhe e quem perca com o aumento da inflação. No rol dos ganhadores, o Estado, com o aumento da arrecadação pública, e investidores que aplicam em renda fixa. No dos perdedores, aqueles que comprometem maior parcela de sua renda com o consumo. Ou seja, a maioria dos brasileiros.

Há uma estratégia do Banco Central na definição da meta da inflação. Seu objetivo é trazê-la para o patamar dos países emergentes, em particular dos nossos vizinhos Chile, Colômbia e México, na casa de 3% ao ano. Ao se voltar contra tal, Lula, em última análise, põe em xeque a credibilidade da política de meta da inflação e, por tabela, do Banco Central. Com um agravante: gera instabilidade, retroalimentando a expectativa inflacionária – em escala ascendente há oito semanas – prolongando, assim, o ciclo de juros altos.

O caminho para trazer os juros para patamar mais baixo sem provocar inflação é o Brasil persistir na sua saga pela modernização do Estado, avançando nas reformas necessárias, como a tributária. E definindo uma nova âncora fiscal, substitutiva ao teto de gastos arrombado sucessivamente pelos governos.

A equipe econômica, por meio de declarações do ministro da Fazenda Fernando Haddad, dá sinais de comprometimento com tais objetivos. Mas, ao contrário das expectativas, ele não parece ter a mesma influência de Palocci.

Hoje o ambiente é outro e o presidente cria uma muralha da China entre a responsabilidade fiscal e a responsabilidade social. Ameaça pôr fim à autonomia do Banco Central quando “esse cidadão” deixar de ser o seu presidente – grosseria desnecessária a Roberto Campos Neto. Fala em revogar privatizações.

Se esse for o caminho, o Brasil navegará veloz rumo ao retrocesso, jogando fora as oportunidades de retomar, com ímpeto, a necessária modernização do Estado.

Distopia orwelliana

Por Hubert Alquéres

Quando esteve no Brasil para a posse de Lula, Gabriel Boric, presidente do Chile, deu uma declaração premonitória em entrevista à jornalista Mônica Bergamo da Folha de S.Paulo: “combater a desinformação não pode significar uma espécie de distopia orwelliana de criar um Ministério da Verdade para quem está no poder definir o que é certo e o que não é”. Referia-se, claro, ao livro “1984”, de George Orwell, onde até as palavras perdiam o sentido. Assim, o Ministério da Verdade, encarregava-se de criar mentiras, reescrevendo a história para moldá-la na glorificação do “Grande Irmão”, personagem fictício do romance.

O revisionismo histórico, ou melhor, a construção de uma história oficial, é um traço de governos autoritários ou populistas, sendo estranho a países onde a democracia é consolidada. Parte da premissa de que a história é ambígua, comportando várias interpretações. Por esse viés, a história deixa de ser uma ciência e se transforma em uma “visão ideológica” dos acontecimentos, adaptada ao projeto político de quem está no poder.

A verdade oficial é sempre a dos vencedores.

Lula está criando a sua com a tentativa de reescrever a história do impeachment de Dilma Rousseff, qualificando-o como golpe, como fez na sua visita à Argentina e ao Uruguai. A tese sempre foi defendida pelo PT como escudo aos desvios de conduta ética e do descalabro econômico do governo da então presidente.

É uma tese sem a menor aderência na realidade, uma vez que a ex-presidente perdeu seu mandato por meio de um processo de impedimento no Congresso Nacional cuja constitucionalidade foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal. Mas como a ninguém é negado o direito de não ser réu confesso, entende-se que o PT monte sua versão do impeachment de Dilma, para não ficar mal perante a história.

Até aí é do jogo. Mas quando a tese do golpe é assumida pelo presidente da República em viagem oficial e reproduzida em site governamental, como o da Empresa Brasileira de Comunicação, estabelece-se a confusão entre o público e o privado, entre partido e estado. Lula não está apenas olhando para o retrovisor. Está criando, por meio da desinformação, e aqui vai a distopia apontada por Gabriel Boric, uma história oficial destinada a gerações futuras. Sem falar no desrespeito que isto significa, afinal o STF concluiu pela legalidade da decisão do Congresso Nacional.

O risco de um Ministério da Verdade petista não está apenas na reinterpretação da história. O ministério da Justiça anuncia a edição de um Pacote da Democracia, no qual postagens que o governo julgue como incitação à violência seriam criminalizadas automaticamente, sem o pronunciamento da Justiça.

De fato, o sentido das palavras vem sendo alterado. O Pacote da Democracia embute um viés que pode cercear a liberdade de expressão, enquanto a Secretaria de Comunicação da Presidência da República cria um “Departamento de Liberdade de Expressão” com vistas a fiscalização de peças de “desinformação”. Na mesma linha, a Advocacia Geral da União criou a “Procuradoria de Defesa da Democracia”, sob o pretexto de combater a desinformação contra políticas públicas.

Para além da sanha punitivista que pode ensejar limitações ao exercício das liberdades públicas, reside aí o perigo alertado por Boric, com o governo avocando para si a missão de definir o que é certo e o que é errado, no melhor estilo orwelliano. A concentração nas mãos do executivo do poder de definir o que é “desinformação” e o que é uma “opinião” levará, inevitavelmente, a distorções.

As declarações de Lula sobre o impeachment de Dilma não são um caso isolado. A onda revisionista em curso vem levando à “reinterpretação” da transição democrática de 1985, com uma certa dose de simpatia pelo caminho seguido pelos argentinos, que puniram seus militares do período da ditadura.

Ne onda ignora-se que cada país da América do Sul tem suas peculiaridades e trilharam caminhos diferentes para superar suas ditaduras. No caso brasileiro, a transição possibilitou o maior período democrático de nossa história republicana, permitindo que o Brasil seguisse adiante. Nem mesmo a intentona da extrema-direita de 8 de janeiro empana os méritos da nossa transição iniciada com a eleição de Tancredo Neves.

Distopias orwellianas não apagam o veredicto da História. E ela já deu seu parecer sobre 1964 e também sobre a destituição de Dilma.

A foto e o fato

Por Hubert Alquéres

A foto da repórter-fotográfica Gabriela Biló, publicada na primeira página na Folha de S.Paulo, suscita um debate sobre limites que devem ser respeitados. Nela, aparece a imagem de um vidro estilhaçado no Palácio do Planalto, na frente do presidente Lula sorrindo e ajeitando a gravata. A foto mostra uma situação de violência e pode sugerir um presidente que está alheio ao perigo.

Para representar o momento atual, tudo indica que o jornal procurava uma daquelas fotos que entram para a história, tipo a famosa do então presidente Jânio Quadros com os pés tortos e que traduziu um governo controverso e sem rumo.

Há uma diferença substantiva entre as duas imagens. Quando flagrou Jânio naquela posição, o fotógrafo Erno Schneider registrou um momento real, captado pelas lentes graças ao seu olho clínico e sua sensibilidade jornalística. Já a de Gabriela não é um flagrante de um momento, mas uma espécie de montagem, o resultado de um recurso técnico moderno de múltipla exposição. A rigor, Lula está a trinta metros do vidro estilhaçado, que na foto publicada aparece à altura do coração do presidente, como se ele tivesse sido baleado.

Diante dos acontecimentos de 8 de janeiro, entre os quais a invasão do Palácio do Planalto durante a intentona da extrema-direita, a imagem publicada pelo jornal foi interpretada como incentivo à violência contra o presidente, como se sugerisse que fosse alvo de um atentado. Choveram agressões verbais e ameaças a Gabriela nas redes sociais, por parte apoiadores de Lula.

Nada justifica tais agressões. Repudiá-las, contudo, não elimina o necessário debate sobre os limites da criatividade e a manipulação, bem como o respeito aos fatos e o senso de responsabilidade que devem ter profissionais e órgãos de imprensa.

Como linha de defesa a repórter-fotográfica argumenta que “fotojornalismo é arte”, como se isso a desobrigasse de retratar um instante de forma concreta. Na arte não há limite para a liberdade de criação e cada um também pode interpretar uma obra de arte como quiser.

O fotojornalismo é notícia, refere-se a um fato, a uma realidade concreta, que não pode ser distorcida, sob pena de cair na manipulação, prática condenada pelos manuais de redação, inclusive pela Folha.

A discussão ética que se impõe é saber até onde vai a “liberdade criativa” do fotógrafo, do editor ou mesmo do jornal.

No caso específico, como observou o ombudsman do jornal, “o semblante de Lula, através do vidro, para a grande maioria dos observadores, passa como um instantâneo legítimo, eis o problema”. Ou seja, a tênue divisa entre criatividade e manipulação foi ultrapassada porque o sentido da imagem foi alterado, possibilitando uma leitura que não é real.

Quanto ao argumento de que “fotojornalismo é arte” recomenda-se levar em consideração as palavras de Simonetta Persichetti, doutora, jornalista e crítica de fotografia: “todo jornalista – e, sim, o fotojornalista é antes de mais nada um jornalista e não um artista – é sim responsável por aquilo que torna público e não pode se isentar afirmando que cada um interpreta como quer.”

Há outro debate tão ou mais importante, a conveniência de sua publicação na primeira página de um jornal de grande circulação nacional em uma conjuntura de radicalização política e poucos dias após a tentativa de assalto ao poder. O vidro baleado é mostrado ao lado da chamada principal que começava dizendo “No foco de Lula…”.

O país acaba de sair de uma eleição extremamente polarizada e de uma tentativa de golpe. Ademais, vivemos tempos de exacerbação da intolerância, de disseminação de fake news nas redes sociais. A imprensa, para estar a serviço da democracia e da sociedade brasileira, deve atuar permanentemente com técnica, rigor e espírito público.

A “ética da responsabilidade” impõe uma reflexão sobre a oportunidade da publicação de uma foto que pode se enquadrar como falsa e mentirosa em momento tão grave como o atual.

Fica a lição. Fatos e fotos não podem se contrapor.

Sob ataque

As Forças Armadas tiveram sua imagem trincada pelos episódios do último 8 de janeiro e sua cadeia de comando se encontra sob dupla pressão.

De um lado, viu-se sob o ataque de colegas de farda contaminados pelo bolsonarismo. Os comandantes das três forças são cobrados por não terem aderido à tentativa de golpe da extrema-direita mas mantido uma postura legalista. O lado visível dessas pressões apareceu em redes de WhatsApp de oficiais da reserva, bem como pela presença de familiares de militares nos acampamentos em frente aos quartéis. Os fatos demonstraram que a contaminação foi bem maior do que se imaginava.

Isto explica, em parte, sua postura extremamente cautelosa em colocar fim aos acampamentos em frente aos quarteis. A atitude do comandante do Exército, general Júlio César Arruda, de impedir a ação repressiva, na noite de 8 de janeiro, ao acampamento em frente ao QG de Brasília, pode ter sido ditada por esses fatores. 

Até aquele domingo, a estratégia combinada entre os três comandantes e o ministro da Defesa José Múcio, era de esvaziar os acampamentos de forma lenta, gradual e segura. Isso vinha produzindo resultados: na véspera dos atentados havia apenas 200 pessoas acampadas em frente ao QG do Distrito Federal. A “insurreição geral” dos bolsonaristas do dia 8 jogou por terra essa estratégia.

As invasões também ocorreram por conta de um apagão nos serviços de inteligência, inclusive o das Forças Armadas. Mais do que conivência, houve subestimação do perigo. Talvez até por simpatia aos acampados não se fez uma leitura precisa da escalada da radicalização, que já era evidente desde a diplomação de Lula.

Mas inferir que todos estavam envolvidos com a trama é ignorar um fato inconteste: a minuta Anderson Torres não era de brincadeirinha, certamente só não foi materializada porque seus autores não obtiveram o apoio que esperavam das Forças Armadas, como observou o arguto jornalista Marcelo Godoy.

A outra frente de ataque à cadeia de comando vem do braço esquerdo do PT, ou sua linha dura. Ela vinha investindo em uma estratégia de confronto e passou a pregar um acerto de contas final com o bolsonarismo para livrar as Forças Armadas de sua influência. Primeiro, pediu a cabeça do ministro da Defesa, pejorativamente caracterizado como “fraco e pusilânime”. E, em seguida, a do comandante do exército.

Ora, se as relações entre o Partido dos Trabalhadores e as Forças Armadas nunca foram das melhores, o clima azedou mais ainda. Principalmente porque Lula publicamente manifestou sua desconfiança e queimou pontes em relação às Forças Armadas, escalando a crise. Mas teve o bom senso de manter seu ministro da Defesa no cargo e de não entregar a cabeça do general Júlio Cesar Arruda.

O fato hoje é que as Forças Armadas estão diante do desafio de restabelecer a hierarquia e a disciplina. Era pedra cantada que a politização da tropa pela ação do bolsonarismo teria efeito deletério. A descontaminação, portanto, passa a ser estratégica para que os militares voltem a se dedicar, exclusivamente, às suas funções constitucionais. E isso só logrará êxito se acontecer de forma alinhada com a cadeia de comando. Com os militares e não contra os militares, para usar feliz expressão do então presidente José Sarney quando da nossa transição democrática.

Qualquer estratégia baseada na escalada da crise poderá ter como consequência jogar nos braços do bolsonarismo a maioria dos oficiais e da tropa que manteve-se no limite da legalidade. Esse é o risco de se colocar os militares na situação indesejável de estar sob ataque.

A bandeira da legalidade

A última vez que a extrema direita tentou assaltar o poder foi em 1938, com o fracassado golpe dos integralistas para destituir Getúlio Vargas.

A intentona bolsonarista impetrada no último domingo submeteu a democracia brasileira a mais uma grande tensão. Ao final, fracassou e viu frustrado seu plano de arrastar as Forças Armadas para uma aventura.

Há pontos a serem esclarecidos sobre o comportamento da cadeia de comando, entre eles a leniência diante a pregação diuturna dos golpistas em frente aos quarteis. Mas, como instituição, as três forças ficaram ao lado da democracia, como reconheceu o ministro da Justiça, Flávio Dino, em sua entrevista coletiva.

Há várias razões para a derrota dos golpistas. Entre elas o fato de terem subestimado a bandeira da legalidade, com peso ao longo de nossa história. Mesmo o golpe de 1964 foi dado sob o pretexto de restabelecer a legalidade constitucional. A partir da noite do último domingo assistimos a algo semelhante à Campanha da Legalidade, constituída em 1961, quando da renúncia de Jânio Quadros, que foi fundamental para a posse do então vice-presidente João Goulart.

Os golpistas do último fim de semana conseguiram unir a sociedade, os poderes constituídos e o mundo político, inclusive os governadores de oposição, na defesa da ordem democrática. Formou-se no país uma vastíssima rede da legalidade, respaldando a resposta das instituições da República.

Há outro paralelo histórico a ser refletido. Jango entendeu o apoio à sua posse como aval ao seu programa e ao seu projeto de poder, radicalizando após a vitória do presidencialismo no plebiscito de 1963. Lula incidirá no mesmo erro, se entender a união nacional formada em defesa do Estado Democrático de Direito como adesão ao seu governo e às teses do Partido dos Trabalhadores.

A maioria dos 49,1% dos eleitores que votaram no seu opositor não aderiu ao governo Lula e nem mudou seus valores.  Boa parte não aderiu à tentativa de golpe. O conservadorismo continua tendo forte expressão na sociedade e presença significativa no parlamento e nos governos subnacionais. 

Não pode, nem deve, ser confundido com a minoria golpista. Muitos desses eleitores estão agora sem chão e faz-se necessário abrir um diálogo com eles. Isso passa por entender como legitima a existência desse segmentos e respeitar seus valores. Só assim poderemos superar a divisão do país em praticamente ao meio e instalar um ambiente de convivência democrática entre pensamentos políticos diversos.

Nesse sentido, Lula não contribui quando, em vez de assumir uma postura de presidente da República, se coloca como líder de uma facção política, ao apregoar uma pretensa superioridade moral da esquerda em relação à direita. Da mesma forma, estigmatiza parte dos eleitores que votou nele, no primeiro ou no segundo turno, ao traçar paralelo entre a intentona da extrema-direita do domingo e o episódio do impeachment de Dilma Roussef.

Com a derrota do golpismo, inicia-se uma nova conjuntura no país. O conservadorismo que havia sido capturado pelo projeto de Bolsonaro pode se liberar de suas garras. Abre-se, assim, a possibilidade de emergir no cenário político nacional lideranças comprometidas com um conservadorismo moderado e de valores democráticos, a exemplo do que acontece em vários países de democracia consolidada.

Como observou o cientista político Fernando Abrucio, há um longo caminho para garantir a solidez da democracia brasileira. A derrota do terrorismo – uma pecha que a extrema direita brasileira carregará durante décadas – não significa que a democracia venceu a batalha pelos corações e mentes dos brasileiros.

As casamatas do extremismo são mais profundas do que os atos de vandalismo em Brasília. Pesquisa do Instituto Atlas divulgada nesta terça apontou que 18,4% dos entrevistados concordaram com a ocupação do Supremo Tribunal Federal, do Palácio do Planalto e do Congresso Nacional e 27,5% acharam que essas ações são justificadas em parte. Para 42,7% Bolsonaro não é responsável pelos atos terroristas de domingo e 36,8% se manifestaram favoráveis a uma intervenção militar para  invalidar as eleições.

E tudo isso após os acontecimentos e larga cobertura da mídia desfavorável aos golpistas!

Não se trata, portanto, de um grupúsculo de idiotas ou lunáticos, mas de uma parte não desprezível de brasileiros aderentes a valores antidemocráticos, pautados por um nacionalismo exacerbado e um fanatismo religioso. Reconvertê-los a valores republicanos e civilizatórios não será uma tarefa fácil.

A batalha de longo prazo passa, necessariamente, pelo papel que a educação está intimada a desempenhar, no sentido da formação de nossos jovens para o diálogo democrático. Ela é a chave para enraizar na sociedade valores como tolerância e respeito ao contraditório, ao pluralismo de ideias e à diversidade.

A construção de uma cultura democrática profundamente enraizada na sociedade é o grande antídoto para que episódios como o assalto aos três poderes da República jamais voltem a acontecer em nosso país.

O desafio da pacificação

Há sempre boa vontade com presidentes, quando tomam posse. Não poderia ser diferente com os discursos de Lula no Congresso e no parlatório do Palácio do Planalto. Ainda mais quando o novo presidente assume o posto após quatro anos de conflitos frequentes de Jair Bolsonaro com instituições. Saudável que suas palavras e os gestos tenham despertado sentimentos de esperança quanto à nova fase a ser vivida pelo país.

O Brasil precisa respirar tranquilidade. Sua mensagem principal se concentrou no combate à miséria e na defesa da democracia. Os dois temas estiveram fortemente presentes nos seus discursos. Realçando que essas serão suas prioridades. A questão é saber quais os caminhos para alcançar tais objetivos e quais obstáculos.

Será impossível alcançá-los plenamente se forem mantidas a polarização e a divisão do país. A ideia de uma ampla frente contra a fome só logrará êxito se vier acompanhada de um amplíssimo entendimento nacional com vistas à reunificação. Lula deu indicativos que entende a urgência de pacificar o país, especialmente em seu discurso no parlatório, quando assumiu o compromisso de “governar para os 215 milhões de brasileiros e brasileiras” e não apenas para quem votou nele. O presidente acerta ainda ao afirmar: “a ninguém interessa um país em permanente pé de guerra, ou uma família vivendo em desarmonia”.

São palavras dignas de elogios, embora estejam em contradição com o tom de polarização do seu discurso no Congresso, quando a marca não foi a pregação da união de todos os brasileiros. Ali suas palavras pareciam ter se voltado para os 51% dos que o elegeram e não para o conjunto da nação. Não foi a primeira vez que Lula fez dois discursos distintos em tão pouco tempo, como se houvesse uma muralha da China entre eles. Isso já tinha acontecido no dia da sua vitória eleitoral.

Como o momento é de acentuar convergências, impõe-se valorizar suas palavras em prol da pacificação, na esperança de que haja correspondência entre a intenção e o gesto, ou melhor, entre o discurso e a prática.

A festa no dia da posse e o mar de gente presente não elude o fato de que o Brasil se encontra hoje tão dividido quanto saiu das urnas. É como se nada tivesse mudado, conforme indica a mais recente pesquisa do Datafolha. Segundo o levantamento, para 51% dos brasileiros Lula fará um governo melhor que o de Bolsonaro. Ou seja, quase o mesmo percentual de sua eleição, quando obteve 50,9% dos votos, contra os 49,1% de Bolsonaro.

É a expectativa mais baixa entre os presidentes eleitos em seu primeiro mandato, desde a redemocratização do país. Collor assumiu com 71% de previsão positiva, praticamente o mesmo padrão de Fernando Henrique Cardoso, com 70%. Lula, quando se elegeu em 2002, tinha expectativa positiva de 76% da população, a mais alta da série histórica, enquanto a de Dilma era de 73%. Mesmo Bolsonaro, eleito em um país já dividido, assumiu seu mandado com uma expectativa positiva de 65%.

São números sobre os quais Lula deveria se debruçar para estabelecer a estratégia adequada com vistas à superação da divisão do Brasil praticamente ao meio. Deveria ainda observar que, com todos os problemas de sua gestão, caracterizada pelo novo presidente como “herança maldita” no seu discurso no Congresso, Bolsonaro conclui seu governo com 39% de aprovação, maior do que a desaprovação ao seu governo.

Vinte anos depois de ter assumido a presidência pela primeira vez, Lula agora encontra o país numa conjuntura completamente diferente, interna e internacionalmente. Em vez do super boom das commodities do início do século, enfrentará uma situação na qual a economia mundial está à beira de uma recessão ou à beira de uma estagflação, como já avaliam alguns especialistas.

Internamente está contratada uma crise fiscal com a expansão dos gastos públicos, com poder de impactos na dívida pública, nos juros e na inflação. Em outras palavras, pode comprometer a atividade econômica e a geração de empregos.

O cenário político está longe de ser um céu de brigadeiro. Apesar de ter constituído um governo de uma frente democrática bem além do PT, não terá vida fácil no parlamento. Em vez de enfrentar uma oposição civilizada, enfrentará a oposição selvagem da bancada bolsonarista turbinada pelas urnas.

Diante desse quadro, o sucesso de seu governo dependerá em muito de lograr êxito na pacificação do país. A união dos brasileiros deveria estar no centro de sua estratégia, tão importante quando o combate à miséria e à defesa da democracia.

Para sua promessa de governar para todos os brasileiros não ser um exercício retórica, deveria desde já, estabelecer pontes com os 49,1% dos eleitores de Bolsonaro. Isso requer grandeza e generosidade para reconhecer a legitimidade de suas posições, como expressão de valores conservadores enraizados na sociedade, entre os quais a defesa da família, o empreendedorismo e o anseio de prosperar na vida. O maior erro seria colocar esse enorme contingente no discurso do golpismo e do fascismo.

A estratégia mais inteligente não é ficar com os olhos fixos no retrovisor. O desafio é olhar para a frente. O discurso da “herança maldita” como escudo para críticas que virão quando as dificuldades de governar falarem mais alto tem fôlego curto. Até por pragmatismo, Lula deveria se empenhar na costura da pacificação da nação.

Vocacionados para a política

Em janeiro de 1919 Max Weber, um dos três autores fundamentais da sociologia, ao lado de Émile Durkheim e Karl Marx, proferiu para estudantes da Universidade de Munique a conferência intitulada “A política como vocação”. Um ano depois seu texto foi publicado, tornando-se um marco do pensamento sociológico moderno. Weber classificou os políticos em dois tipos: os que viviam da política e os que viviam para a política.

Segundo a teoria weberiana, os primeiros são os políticos profissionais, que fazem da política um meio para obter vantagens pessoais. Pecuniárias ou de poder. Já os outros são movidos por ideais e pelo compromisso com a coisa pública. Estes fazem política por vocação, como exercício de um sacerdócio.

A classificação weberiana pode ser aplicada à realidade brasileira, na qual também encontramos os dois tipos de políticos.

A captura da política pelo patrimonialismo é uma herança dos nossos tempos coloniais e escravista. As relações promiscuas entre o público e o privado sempre estimularam o surgimento dos chamados profissionais da política, levando à banalização do “rouba, mas faz” e do “é dando que se recebe”. Os que vivem da política são os principais agentes do esgarçamento da imagem das instituições democráticas e republicanas.

Nem todos os gatos são pardos, nem todos os políticos são farinha do mesmo saco. A história brasileira é cheia de exemplo de homens públicos que viveram para a política, exercendo-a como um sacerdócio. Não precisamos recorrer aos tempos imemoriais. Basta olhar para um passado mais recente, quando existiu no Brasil uma geração que dignificou a política e prestou relevantes serviços ao país. Dessa safra saíram Ulysses Guimarães, Mário Covas, Teotônio Vilela, Leonel Brizola, Darcy Ribeiro, Franco Montoro, Tancredo Neves, Fernando Henrique Cardoso e tantos outros.

Agora mesmo temos dois senadores em fim de mandato, José Serra e Tasso Jereissati, que deixam enorme legado para as gerações futuras. São exemplos de coerência, de zelo com a coisa pública, de compromisso com a democracia e com a justiça social.

Serra foi, desde sua juventude, testemunha e agente da história. Como presidente da UNE viveu os tensos momentos de 1964, amargou o exílio. Com sólida formação intelectual, foi quase tudo na política: senador, deputado, prefeito, governador de São Paulo, melhor ministro da Saúde de todos os tempos, quando lançou os genéricos ou criou o programa de combate a AIDS, premiado pela ONU como um exemplo. Gestor de primeira linha, minucioso até nos detalhes, destacou-se por sua enorme capacidade de tirar do papel projetos importantes e de aglutinar inteligências. Nunca foi dado a bravatas, assim como nunca titubeou em adotar atitudes corajosas quando elas se fizeram necessárias, como foi o caso da quebra da patente de remédios fundamentais tratamentos de saúde.

Quando o empresário Tasso Jereissati entrou na política, em 1986, o Ceará vivia os tempos do coronelismo, com sua política sendo dominada pelos coronéis Virgílio Távora, Cesar Cals e Adauto Bezerra. Os indicadores sociais do Estado eram uns dos piores do país, bem como altíssima concentração de renda. Em seu primeiro mandato, Tasso realiza um “governo de mudanças”, pondo fim à era do coronelismo e do clientelismo, implantando um projeto de moralização, austeridade e transparência na gestão pública. Governador por três mandatos, foi presidente do PSDB, desempenhando protagonismo para a consolidação da candidatura de Fernando Henrique a presidente.

Serra e Tasso são duas lideranças remanescentes de um PSDB que fez história e mudou a face do Brasil ao promover a estabilidade da moeda por meio do Plano Real. O fim da inflação, uma conquista dos tucanos, representou a maior transferência de renda em favor dos assalariados de nossa história. A modernização do estado, com o saneamento de suas finanças possibilitou avanços estruturantes em áreas sociais como a saúde e a educação.

Há um traço em comum na trajetória política dos dois senadores: a obsessão com o equilíbrio das contas públicas e com a responsabilidade fiscal, sem os quais programas sociais não são sustentáveis. Isso ficou muito claro na recente aprovação da PEC da Transição, quando Serra e Tasso apresentaram propostas, cujo espírito foi incorporado ao texto final, como a exigência de o novo governo ter um prazo para apresentar sua proposta de âncora fiscal, em substituição ao Teto dos Gastos.

Em seu artigo “A política como vocação”, Max Weber destaca três características essenciais para o líder político ideal: a paixão, o sentimento de responsabilidade e de percepção. Em outras palavras, deve ser dotado de caráter e responsabilidade para lidar “com os poderes diabólicos”, a pressão e tensão que o líder político pode enfrentar.

Tais virtudes estão presentes na trajetória de linha reta de José Serra e Tasso Jereissati, que sempre fizeram política com paixão e por vocação.

Camilo ministro

Indicação do ex-governador é um alívio ainda que Izolda Cela tenha sofrido vetos políticos

Por Hubert Alquéres

Governadora do Ceará em fim de mandato, Izolda Cela tinha todas as credenciais para ser ministra de Educação. Seu nome está ligado às reformas educacionais do Ceará, responsáveis por levar o ensino fundamental do Estado a dar um salto no ranking nacional. Hoje 87 das 100 escolas do ensino fundamental com melhor desempenho são cearenses. 

Tudo começou com a experiência pioneira do município de Sobral, quando foram criadas as bases metodológicas de um programa inovador: a Alfabetização na Idade Certa. Izolda era a secretária municipal da educação que fez de Sobral uma referência nacional.

A experiência de Sobral foi generalizada para o Estado no governo de Cid Gomes, com Izolda como secretária estadual de Educação. Iniciava-se ali um inédito programa de colaboração entre o Estado e os 184 municípios cearenses para melhorar os indicadores de alfabetização. A chave do programa foi a combinação entre mecanismos de incentivo e apoio a professores e gestores, agentes implementadores das mudanças no funcionamento das escolas. Na sua gestão o modelo combinava uma saudável competição com a necessária colaboração entre os entes federativos, e uma descentralização coordenada. 

Camilo Santana faz parte do sucesso desse modelo educacional. O ex-governador do Ceará, que passou a faixa para Izolda, sua vice, tem fama de bom gestor e de capacidade de diálogo. No seu mandato como governador o ensino integral teve forte expansão no Ceará. Nesse sentido, não é um estranho no ninho nas questões da educação. Ao contrário, tem compromisso, foco e experiência.

As escolhas de Santana como Ministro de Educação e de Izolda como secretária do Ensino Básico indicam que ficaram para trás os tempos de ausência de protagonismo do MEC, de perda de foco na aprendizagem, de polarizações ideológicas estéreis, de apagão na educação. 

Lula acertou ao escolher a dupla para comandar o ensino básico brasileiro. Sinalizou que a prioridade do seu governo é a aprendizagem de nossas crianças e adolescentes, com foco nos resultados. Demonstrou também que, em uma pasta tão estratégica para o país, a escolha da equipe do Ministério deve se pautar na experiência, competência e compromisso com a educação. 

A escolha de Camilo cria uma sensação de alívio ainda que Izolda Cela tenha sofrido vetos políticos. Primeiro, por Ciro Gomes, que a impediu de disputar a reeleição pelo PDT. Agora, pelo PT, no momento em que parlamentares e lideranças petistas divulgaram uma carta contra sua escolha. Izolda foi preterida ao cargo de ministra, ainda que tenha servido ao governo do PT de forma fidedigna, por não ser uma petista de carteirinha.

Gestores educacionais do porte de Izolda não surgem da noite para o dia. Um país que tem tanta carência não se pode dar ao luxo de tratá-los com desrespeito. 

Esse tipo de sinalização acende a luz amarela de alerta. 

A educação, que nos últimos quatro anos foi duramente afetada por um viés ideológico, não pode ser refém de disputa política mesquinha.