Cara nova, roupa velha

Cuba muda pero no mucho

Em Cuba os sobreviventes da geração da Sierra Maestra – da qual restaram as figuras legendárias de Raul Castro e Ramiro Valdez – dão lugar a uma nova nomenclatura formada no aparato do estado e do Partido Comunista. A face mais visível da troca de guarda é o novo presidente cubano, Miguel Dias-Canel, 58 anos, “eleito” pela Assembleia Nacional por 603 votos entre 604. Provavelmente, só ele se absteve na votação, um gesto de modéstia que Josef Stalin também praticava quando era eleito com 99,99% dos votos dos membros do soviete supremo.

“Unanimidade” é praxe em países comunistas de ditadura de partido único em que eleição é meramente ornamental. A sucessão verdadeira se decide por outros meios. Na Coreia do Norte, de pai para filho, em Cuba por meio do dedazo. A dedo, Fidel Castro indicou seu irmão Raul Castro para sucedê-lo e a dedo Raul escolheu Dias-Canel para substituí-lo.

Ainda assim, em uma transição torta. As rédeas do Partido Comunista e das Forças Armadas, onde se concentram o poder de fato, continuarão enfeixadas nas mãos de Raul Castro até 2021. Esse modelo de transição é o mesmo de 12 anos atrás, quando Fidel trouxe seu irmão para o primeiro plano.

Cuba muda pero no mucho. Está de cara nova, mas é mais do mesmo, como deixou claro o novo presidente em seu discurso continuísta.

Miguel Dias-Canel se apressou em dizer que não há espaço para quem pensa em restaurar o capitalismo e que defenderá a “obra colossal da revolução socialista”. No máximo, implementará um pouco mais de velocidade às tímidas reformas econômicas iniciadas há dez anos por Raul Castro.

Essas reformas abriram espaço para a iniciativa privada em áreas de serviço, mas sem alterar substancialmente o modelo econômico pautado na inexistência de uma economia de mercado, no planejamento estatal e no controle dos meios de produção pelo Estado.

Com muita boa vontade, alguns analistas comparam Raul Castro a Deng Xiao Ping, o dirigente comunista que abriu o caminho para a China ser a potência econômica de hoje. Nada a ver. Os próprios dirigentes cubanos rechaçam a hipótese de seu país seguir o modelo por chineses e vietnamitas. Insistem no molde do “socialismo com peculiaridades cubanas”.

Os dez anos de Raul não foram suficientes para dar fim ao perverso câmbio duplo, que divide os cubanos em duas categorias: os que tem acesso à moeda conversível – o CUC – e os que recebem o peso não conversível. A crise da Venezuela – de quem Cuba passou a depender depois do fim da URSS – pressiona o novo presidente da ilha a dar mais ritmo às reformas, antes que a economia entre em colapso de vez.

Na política, nada muda. O poder continuará sendo monopólio do Partido Comunista.

Tudo isso explica porque a população de Cuba ficou apática diante da troca de comando no regime: suas vidas não irão melhorar com a assunção de Miguel Dias-Canel.

 

O inferno astral do PSDB

Como foi possível a socialdemocracia chegar ao fundo do poço, dois anos após de ter sido o grande vitorioso das eleições municipais?

Hubert Alquéres & Tibério Canuto *


Como se houvesse uma combinação negativa dos astros, o PSDB vive o pior momento de sua história. O Datafolha mostrou Geraldo Alckmin estagnado na casa de 8% dos votos. Sem encantar os eleitores e sem irradiar expectativa de poder, não tem exercido o papel de polo aglutinador de um centro democrático disperso em vários candidatos. Na sua principal fortaleza – São Paulo – João Doria trava uma guerra civil com a candidatura de Márcio França e, pela primeira vez em 24 anos, a hegemonia dos tucanos no Estado pode ser abalada.

Aécio Neves é a bola da vez, quem os brasileiros querem ver atrás das grades. Réu por decisão unânime da Primeira Turma do STF, o homem de 51 milhões de votos é hoje um dos símbolos da impunidade, do Brasil que os brasileiros querem deixar para trás. A condição de réu de Aécio é mais fator de desgaste para o PSDB porque o partido foi tíbio no enfrentamento das graves denúncias contra ele, que era então o presidente do partido. Ainda que Alckmin não tenha sido atingido diretamente pela Lava-Jato, a situação jurídica do senador respinga na candidatura do presidenciável e é um forte revés para o PSDB. O discurso do “partido da ética”, tão eficaz em eleições passadas, está fragilizado porque os tucanos não afastaram Aécio no devido tempo e o deixaram dar as cartas até a undécima hora, apesar de licenciado da presidência do partido.

O Datafolha mostrou uma candidatura sitiada sob todos aspectos. Em São Paulo, Alckmin tem apenas 16% nas pesquisas, dividindo a pole position com Jair Bolsonaro. No Sudeste, que nas eleições passadas foi varrido por uma onda azul, tem apenas 11% de intenção de voto. É devorado ainda por Álvaro Dias, no Sul, e, à sua “esquerda”, pelo ex-ministro do STF, Joaquim Barbosa.

Alckmin tem motivos de sobra para se preocupar.

Sem sequer ter dito “oi, sou candidato”, Barbosa já fincou estacas em redutos “inexpugnáveis” dos tucanos. Nas grandes cidades tem 12% das intenções de voto, enquanto o presidenciável do PSDB tem apenas 6%. Entre os eleitores com nível superior a diferença é maior: 17% a 9%.

Joaquim Barbosa é impulsionado pelo mesmo fenômeno que colocava Luciano Huck com quase 10% nas pesquisas. Há um contingente expressivo do eleitorado com sede de renovação e em busca de alternativa. É cedo para saber se Barbosa é a resposta, mas ele parte bem colocado, com potencial de fazer estragos a montante e a jusante, nas candidaturas do centro, mas também nas candidaturas de esquerda, em função de seu histórico de vida.

Como foi possível a socialdemocracia chegar ao fundo do poço, dois anos após de ter sido o grande vitorioso das eleições municipais? O espanto é maior quando se leva em consideração que a disputa presidencial de 2014 tinha cacifado os tucanos para a alternância de poder, enquanto o lulopetismo entrava em parafuso logo após o impeachment de Dilma.

Uma primeira explicação está na constatação de que seu crescimento não se deu em bases sustentáveis. Os pilares do castelo tucano estavam implantados em areias movediças. O PSDB foi se transmutando e hoje pouco tem a ver com aquele partido que estabilizou a economia, modernizou o Estado, democratizou o acesso à telefonia e avançou na universalização dos direitos sociais básicos, particularmente na Educação, com a “revolução gerenciada” de Paulo Renato Souza, e na Saúde, área em que José Serra se afirmou como o melhor ministro da história do país. Para não falar no programa Comunidade Solidária de Ruth Cardoso, com sua visão emancipacionista e no modelo de gestão implantado em São Paulo por Mário Covas, até hoje uma referência de compromisso com a coisa pública.

O PSDB fez um governo socialdemocrático, no sentido estrito da palavra, nas condições concretas do Brasil, mas não soube defender o legado da gestão de FHC quando foi para a planície. Isso, contudo, é pré-história. A sua desfiguração como um partido com um mínimo de verniz ideológico e conformação programática é um fenômeno datado e tem muito a ver com a ascensão de Aécio Neves.

Sim, o aecismo foi a expressão concentrada da mudança da base de apoio do PSDB e da sua rendição ética e ideológica. Pouco a pouco, o PSDB foi assumindo a conformação de uma força de centro-direita. Eis aí mais uma jabuticaba brasileira. Em lugar nenhum do mundo a socialdemocracia tem essa conformação ideológica.

O PSDB passou a fazer oposição ao lulopetismo pelo lado mais conservador. Ignorou que a superação do lulopetismo não se dará pela negação do que ele teve de positivo – a inclusão social – mas por elevá-la a outro patamar, tornando-a sustentável e voltada menos para o distributivismo e mais para a promoção da cidadania por meio da universalização de serviços públicos de qualidade.

Em vez disso, aderiu acriticamente ao antipetismo radical e estéril, cedendo à pressão de segmentos das camadas médias conservadoras. Tais segmentos aderiram aos tucanos na disputa presidencial de 2014 por falta de opção. Agora encontraram seu candidato natural: Jair Bolsonaro.

Esse discurso foi eficiente para eleger João Dória – talvez a maior expressão política da conversão conservadora do tucanato – mas mostra agora seus limites. Seu subproduto, contudo, foi altamente negativo, com o aparecimento de uma militância que nada tem de socialdemocrata e está mais próxima dos valores do MBL. Gerou ainda a cultura da intolerância e uma “esquerdofobia” absurda.

A perda de qualquer identidade socialdemocrata está evidenciada no discurso de Dória, na disputa para o governo do Estado. De dedo em riste o ex-alcaide acusa Márcio França, vejam só o crime, de ser socialista! Ué, a socialdemocracia não expressa, na sua vertente mais avançada, a ideia do socialismo democrático? Não era isso que propugnava Olof Palmer, Willy Brandt, Mário Soares, Felipe Gonzales e Fernando Henrique Cardoso?

A guinada à direita se expressou com força na bancada parlamentar peessedebista no Congresso, a partir de 2010. Eis alguns casos emblemáticos: Um dos projetos de lei do programa Escola sem Partido é de autoria do deputado Izalcy, pré-candidato dos tucanos ao governo do Distrito Federal. Paulo Renato deve estar se revirando no túmulo por causa da iniciativa do parlamentar tucano, pois ela é uma afronta a tudo o que o PSDB fez na educação, onde implementou uma política efetivamente socialdemocrata. Bom, o deputado Izalcy não é um ponto fora da curva. Seu colega de bancada, Rogério Marinho, PSDB/RN, é autor de um projeto de lei sobre “assédio ideológico”, que quer pena de prisão para professores que façam “lavagem cerebral” nas criancinhas!

Outra estrela em ascensão durante os anos Aécio foi o líder da bancada ruralista, Nilson Leitão, atual líder do PSDB na Câmara. Como relator da CPI da Funai, o deputado pediu o indiciamento de dois mortos, num total de 120 pessoas suspeitas, entre servidores da Funai, procuradores federais, advogados da União, professores universitários, antropólogos, lideranças religiosas da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e representantes de organizações socioambientais. Nilson Leitão foi alvo de críticas ácidas de Eliane Cantanhêde e Miriam Leitão – não há parentesco entre os dois – por causa do seu projeto de lei que institucionalizava o trabalho escravo no campo.

É injusto atribuir a baixa intensidade de Alckmin nas pesquisas às suas características de jogar parado e de não transmitir empatia. Certamente elas pesam, mas não são determinantes. Pesa muito mais a descaracterização ética do PSDB. Quando sua principal liderança foi atingida pelas delações da Odebrecht e da JBS, em vez de se fazer a defesa do partido, se fez a defesa de Aécio. Essa blindagem arrastou-se até o limite do insuportável, com o agravante de que os tucanos perderam o timing de desembarcar do governo.

Deveriam ter saído assim que surgiu a gravação de Michel Temer e Wesley Batista, reafirmando ao mesmo tempo seu decidido apoio às reformas. Em vez disso, deixou arrastar-se seu drama existencial de ser ou não ser governo e submeteu-se a situações humilhantes, com Aécio, manobrando e indicando deputados tucanos como relatores das duas denúncias contra Temer.

É a tudo isso que os eleitores estão punindo. A candidatura de Geraldo Alckmin arca com o prejuízo. Não será o único afetado. O mau humor do eleitorado com o PSDB tende a se manifestar na eleição de deputados, senadores e governadores, mesmo que em grau menor. Já imaginaram as dificuldades da candidatura de Anastasia diante da condição de réu de Aécio Neves?

O cerco está armado. A questão é saber como rompê-lo. Geraldo Alckmin aposta na reaproximação com o DEM de Rodrigo Maia. De fato, por aí ampliaria o tempo televisivo e daria mais capilaridade à sua candidatura, além de atenuar o isolamento no qual está confinado. Contudo, se estender seu movimento para o MDB, pode ser o beijo da morte, tal a toxidade do partido de Temer.

Ampliar o leque de alianças é necessário, mas insuficiente. Tal esforço redundará em nada se não for acompanhado de um discurso que reconcilie o PSDB com seu eleitorado histórico, o que remete em voltar às suas origens e à sua vocação reformista e de principal polo de uma esquerda democrática e republicana, comprometida com os fundamentos econômicos, a austeridade fiscal e o reformismo social.

Para utilizar uma definição de Fernando Henrique Cardoso: para empolgar e ter chances de vitória, a candidatura de Geraldo deve assumir um caráter democrático, popular e progressista.


* Hubert Alquéres é  professor, membro da Academia Paulista da Educação, colaborador do blog Noblat/site Veja; Tibério Canuto é jornalista.

Candidatura sitiada

Alckmin tem motivos de sobra para se preocupar.

O ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin saiu das eleições municipais em 2016 com enorme cacife eleitoral, tendo à frente uma larga avenida para construir sua pretensão presidencial. Está confinado, agora, em um círculo de giz, não ultrapassando a casa de 8% nas pesquisas, como revelou o Datafolha. Pior: está estagnado nesse patamar há meses e vê concorrentes avançarem em redutos nos quais o PSDB sempre foi bem votado.

Sua situação é de quem está sob cerco. Há menos de dois anos elegeu 80% dos prefeitos paulistas, hoje teria apenas 16% de intenção de voto no estado, dividindo a pole position com o deputado Jair Bolsonaro. No Sudeste, que nas eleições passadas foi varrido por uma onda azul, tem apenas 11% de preferência do eleitor. É devorado por Álvaro Dias, na região Sul, e, à sua “esquerda”, pelo ex-ministro do STF, Joaquim Barbosa.

Alckmin tem motivos de sobra para se preocupar.

Sem sequer ter dito “oi, sou candidato”, Barbosa já fincou estacas em redutos tidos como inexpugnáveis pelos tucanos. Nas grandes cidades alcançou 12% das intenções de voto, enquanto o presidenciável do PSDB tem apenas 6%. Entre os eleitores com nível superior essa diferença é ainda maior: 17% a 9%.

Joaquim Barbosa é impulsionado pelo mesmo fenômeno que colocava Luciano Huck com quase 10% nas pesquisas. Há um contingente expressivo do eleitorado com sede de renovação e em busca de alternativa. É cedo para saber se Barbosa é a resposta, mas, em função de seu histórico de vida, arranca bem colocado, com potencial de fazer estragos à montante e à jusante, nas candidaturas do centro e também nas de esquerda.

Não tenham dúvidas, Barbosa montará no cavalo encilhado, com o PSB na sua garupa. Se evidenciar expectativa de poder atrairá apoios até de onde não se espera.

O quadro do presidenciável tucano se complica pelo estado de guerra civil em sua principal base de apoio, dividida entre as candidaturas ao governo de São Paulo de Márcio França, do PSB, e João Dória. França já admite que em seu palanque estadual também haverá espaço para Barbosa.

O PSDB ainda não encontrou uma explicação lógica para o desempenho do seu presidenciável. A resposta pode estar no tipo de antipetismo que os tucanos praticaram mais recentemente, com forte carga conservadora e de ódio, cartão de visitas de Bolsonaro.

A perda de identidade do PSDB cobra agora seu preço.

Em 2016 o eleitorado puniu o PT. Tudo indica que agora quer punir o PSDB em quem depositou tantas esperanças e viu-se frustrado pela total falta de propostas, bandeiras e causas para o futuro do país, bem como por desvios de conduta de lideranças como Aécio Neves. Se for assim, o castigo não se limitará ao seu presidenciável.

Emparedado, Geraldo Alckmin pensa furar o cerco por meio da aproximação com o DEM de Rodrigo Maia e, no limite, com o MDB do presidente Michel Temer. Sem dúvida isto daria maior tempo televisivo e capilaridade nos estados. Mas a toxidade do MDB mais atrapalha do que ajuda. Além de ser uma solução com nenhum encanto, com a velha política e seus eternos atores. Insuficiente para reconciliar os tucanos com seus eleitores.

Hubert Alquéres é professor e membro do Conselho Estadual de Educação (SP). Lecionou na Escola Politécnica da USP e no Colégio Bandeirantes e foi secretário-adjunto de Educação do Governo do Estado de São Paulo 

Lula conduz o PT ao matadouro

A prisão de Lula – e a possibilidade de ela se estender por um prazo longo – recomenda a revisão da estratégia petista.

A sorte do Partido dos Trabalhadores sempre esteve atrelada a Lula. Estabeleceu-se entre os dois uma relação de dependência, onde, erigido a semideus, o caudilho pensava e decidia por todos. Se no passado a lulo-dependência deu bons frutos, agora pode levar o PT ao isolamento político e eleitoral se for para valer a decisão de sua executiva de Lula ser o candidato e “em qualquer circunstância”.

A prisão de Lula – e a possibilidade de ela se estender por um prazo longo – recomenda a revisão da estratégia petista. Mas o próprio caudilho tomou medidas acautelatórias para que isto não aconteça. Da cela, escalou sua dama de ferro, Gleisi Hoffman, como porta-voz e responsável pela articulação com outras forças políticas. O recado foi claro: qualquer negociação, interna e externa, tem de se dar em torno da candidatura de Lula. Fora disso, não há conversa.

Desde sua condenação em primeira instância, estabeleceu-se uma estratégia de mão única – ele ou ele -, vedando qualquer debate sobre um plano alternativo. Era pedra cantada, mas o ex insistiu no bordão “eleição sem Lula é fraude”, afastando aliados como o PSB e o PDT de Ciro Gomes.

O próprio Lula passou atestado do isolamento quando no circo de São Bernardo bradou que ali não estavam os engravatadinhos. De fato, de aliados apenas dois puxadinhos do PT: o PC do B de Manuela D’Avila e o Psol de Guilherme Boulos.

Se Lula não é mais senhor do próprio destino, por que então está conduzindo o PT para o matadouro mesmo sabendo que o registro de sua candidatura será negado de ofício pela Justiça Eleitoral?

Possivelmente está mais interessado na sobrevivência da narrativa que construiu para a história do que no destino do partido. Não necessariamente, os interesses de Lula e do PT são coincidentes.

A recusa em adotar o plano B é uma espada de Dâmocles na cabeça dos parlamentares petistas que vão disputar a eleição. E um obstáculo para a costura de alianças eleitorais.
Até quando será possível interditar um debate que está na cabeça de muitos petistas?

Outro fator contribui para a ampliação do isolamento petista: o “Lulinha paz e amor” deu lugar ao Lula carbonário, como se viu em seu discurso em São Bernardo.

É voltar ao PT do macacão. Só que este PT não pode ser reinventado, e a radicalização de seu líder acontece no momento em que se esvaiu o seu dom de mobilização. O palanque do ABC de agora ilustra bem que pouco ou quase nada restou do líder que encantava multidões.

Hubert Alquéres é professor e membro do Conselho Estadual de Educação (SP). Lecionou na Escola Politécnica da USP e no Colégio Bandeirantes e foi secretário-adjunto de Educação do Governo do Estado de São Paulo 

Radicalismo e insensatez

O risco à estabilidade democrática vem da exacerbação do ódio político, alimentado pelas candidaturas de Lula e Jair Bolsonaro.

As circunstâncias históricas e os agentes são outros, mas em certos aspectos a conjuntura atual lembra a de 54 anos atrás, quando a radicalização política da esquerda e da direita culminou no golpe de 1º de abril de 1964.

Ainda que a situação hoje seja bem diferente e com peculiaridades próprias, o filme se repete. Não quanto ao risco de uma ruptura democrática patrocinada pelas Forças Armadas, que têm cumprido suas funções constitucionais e resistido ao canto das vivandeiras. O próprio comandante do Exército Brasileiro, general Eduardo Villas Bôas, reafirmou nesta 3ª feira que defende o “respeito à Constituição, à paz social e à Democracia”, e que a instituição “se mantém atenta às suas missões institucionais”.

O risco à estabilidade democrática vem da exacerbação do ódio político, alimentado pelas candidaturas de Lula e Jair Bolsonaro. Episódios como os ocorridos na passagem da caravana de Lula no sul do país são um prelúdio do que estar por vir, se a bomba não for desativada a tempo.

Ninguém pode garantir como será o dia seguinte ao do julgamento do habeas corpus de Lula. Nem mesmo a ministra Carmem Lúcia. Seu pronunciamento na TV expressou a dramaticidade do momento, e, ao mesmo tempo, expôs a fragilidade da Suprema Corte para agir como polo moderador.

Há uma base social para a escalada da radicalização. Os seguidores de Lula insistem no discurso de que eleição sem Lula é fraude e há quem chegue a dizer que “vai morrer muita gente” se ele for preso.

A radicalização é ditada também pelo pragmatismo. Convém ao lulopetismo alardear que o Brasil está diante do impasse: ou Lula ou o fascismo. O palanque do Circo Voador juntou Lula, Manoela D’ Ávila e Guilherme Boulos com esse propósito. Esses são os “democratas”. Seus opositores os “fascistas”.

A direita também tem sua base social, e não é pouca. Aqui outra semelhança com 1964. Segmentos importantes deslocaram-se para Bolsonaro impulsionados pelas crises ética e de segurança.

Reduzi-los a fascistas serve à propaganda petista, mas não explica o fenômeno. No fundo, foi a própria degradação moral de governos petistas que os impulsionou à direita. De qualquer modo, surgiu daí uma “militância” bolsonarista aguerrida e truculenta.

Outro ingrediente é a falência dos freios e contrapesos do nosso arcabouço constitucional. Não apenas do Executivo, do Legislativo, mas também do Judiciário. O STF poderia fazer o papel de poder moderador, mas, ao contrário, ele tem sido fator de instabilidade com decisões casuísticas, comportamentos egocentricos e patéticos.

O centro democrático também contribui para a radicalização, ao ser incapaz de construir uma alternativa aglutinadora. Há o risco de seus candidatos, o governador tucano Geraldo Alckmin inclusive, de seguir o exemplo de François Fillon na França. O então candidato republicano endureceu seu discurso para a direita com vistas a disputar votos com a candidata deste campo, Marine Le Pen. Foi inútil.

No país do dissenso, decisões serão sempre contestadas pela parte perdedora. Sejam elas do STF no julgamento do HC de Lula, ou das urnas.

Em clima radicalizado, as vozes da sensatez não são ouvidas.

Em 1964 Santiago Dantas tentou criar a “esquerda positiva” em torno da candidatura de Juscelino Kubitscheck, para evitar o golpe. Hoje, antevendo o pior, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso prega a reunificação do país em torno de objetivos comuns. Quantos lhe darão ouvido?

Hubert Alquéres é professor e membro do Conselho Estadual de Educação (SP). Lecionou na Escola Politécnica da USP e no Colégio Bandeirantes e foi secretário-adjunto de Educação do Governo do Estado de São Paulo