Réquiem para o socialismo do século 21

O pai do “socialismo do século 21” tem a honestidade intelectual que falta ao PT, ao PSOL

A Venezuela foi a pátria-mãe do “socialismo do século 21”, assim como a União Soviética o foi para o chamado “socialismo real”. Na primeira década deste século o teórico alemão Heinz Dieterich viu no governo de Hugo Chávez a confirmação do modelo que concebeu, pautado na “economia de equivalência”, na “democracia de massas” e “na democracia de base”; em contraposição à economia de mercado e à democracia representativa.

Em virtude de sua teoria, Dieterich virou guru de uma esquerda órfã desde a queda do muro de Berlim e do fim da URSS. Em 2005 Hugo Chàvez adotou o slogan “socialismo do século 21” e o alemão foi alçado à condição de seu oráculo. Essa mesma esquerda agora deve estar jogando pedra em Dieterich por ter desconstruído a teoria esposada pelo recente Foro São Paulo, realizado em Havana, segundo a qual a crise venezuelana é produto da ação imperialista dos EUA.

O pai do “socialismo do século 21” tem a honestidade intelectual que falta ao PT, ao PSOL, e a muitos de nossos intelectuais. Sem meio termo, acusa o “companheiro Maduro” de ser um “ditador capitalista estatal inteiramente incapaz” e de ter arruinado o país ao se aliar à oportunistas. Diz ainda que a Venezuela é um “Estado em falência, à beira do abismo” e põe o dedo na ferida ao diagnosticar que a crise por lá “é 100% doméstica”.

Suas palavras soam como um réquiem: “Ela (a crise venezuelana) liquida factualmente a ideia de socialismo de Chàvez em todo o continente e destrói as estruturas de integração latino-americana.” Que diferença da nossa esquerda!

Sem ilusões, só vê três alternativas para a agonizante Venezuela: intervenção externa (hipótese remota, na sua avaliação), golpe militar ou insurreição das massas que redundaria numa guerra civil. Qualquer uma dessas alternativas será fator desestabilização para o continente, sobretudo para os países vizinhos, como Brasil e Colômbia.

Sua projeção aparenta ser catastrofista, mas se baseia na realidade. A inflação deve bater na casa de um milhão por cento, algo que só se viu na Alemanha nos anos 20, quando para se comprar um pãozinho era necessário um carrinho de mão para transportar o dinheiro; na Hungria pós Segunda Guerra Mundial, com inflação de 195% ao dia; e com a inflação de onze dígitos do Zimbábue, em 2008.

Nenhuma chance de dar certo o plano lançado por Nicolás Maduro de cortar cinco zeros no Bolívar, de criar uma moeda virtual, e agora, de poupança em ouro. Ele só irá acelerar um estado de dissolução da Venezuela como nação.

O êxodo venezuelano gerou uma crise humanitária sem precedentes no continente, com cerca de 2,3 milhões de refugiados. A imigração desordenada tem enorme potencial de gerar uma onda de xenofobia e intolerância. O lamentável e apavorante episódio e Pacaraima está aí para servir de alerta.

A crise da Venezuela deixou de ser um problema apenas dos venezuelanos ou mesmo dos países latino-americanos. É hoje uma questão a ser equacionada no concerto mundial das nações. Se nada for feito, a hecatombe do “socialismo do século 21” será caótica e sangrenta. Muito diferentes da queda do Muro de Berlim e do fim do “socialismo real”, que se deram pela via pacífica.

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Hubert Alquéres é professor e membro do Conselho Estadual de Educação (SP). Lecionou na Escola Politécnica da USP e no Colégio Bandeirantes e foi secretário-adjunto de Educação do Governo do Estado de São Paulo.

 

Réquiem para o socialismo do século 21

Mercadores de bondade

Como se alimentam de votos, preferem iludir os eleitores a enfrentar a realidade tal qual ela é.

É como se fosse reprise de um filme. Em toda eleição os candidatos prometem mundos e fundos, esquivando-se de assumir compromissos com medidas antipáticas, ainda que necessárias e muitas vezes obrigatórias. Como se alimentam de votos, preferem iludir os eleitores a enfrentar a realidade tal qual ela é. Quem não se lembra da campanha de 2014, quando Dilma Rousseff vendia a imagem de um país paradisíaco inexistente, para depois de eleita gerar a maior recessão de nossa história?

Não está sendo diferente na disputa presidencial deste ano. Seja quem for o futuro presidente, terá de adotar medidas duras, sob pena de o país cair na insolvência. Economistas conceituados estimam a necessidade de um ajuste fiscal da ordem de 5% do PIB. Do contrário, a dívida pública degringolará de vez. Mas o que dizem os presidenciáveis sobre isto?

Da mesma forma, o sistema previdenciário pode gerar uma crise de proporções maiores do que a da Grécia. Atualmente já consome cerca de 12% do PIB. Poderá faltar dinheiro para pagar aposentadorias e pensões dentro de poucos anos se as mudanças na Previdência forem postergadas. As reformas, atualmente congeladas, serão mais urgentes face às nuvens negras que se anunciam no cenário internacional com a crise da Turquia.

Em vez de dizerem como pretendem cortar na carne, alguns presidenciáveis douram a pílula, pondo em dúvida até mesmo o caráter deficitário da Previdência. Isto quando não vão na linha do expansionismo fiscal e propõem retrocessos no que duramente foi conquistado, como a revisão do teto dos gastos públicos e da reforma trabalhista.

É mais fácil vender terreno na lua, como faz Ciro Gomes com sua promessa de zerar a inadimplência de 60 milhões de pessoas do que apresentar propostas consistentes e tecnicamente viáveis.

Como mágicos de circo, sacam soluções miraculosas sem lastro algum. Nisso Ciro tem sido imbatível. Fala em uma Previdência pelo sistema de capitalização sem definir como será o financiamento do longo processo de transição, ou seja, de onde sairão os recursos para pagar as atuais aposentadorias.

Na teoria todos os presidenciáveis se dizem comprometidos com a retomada dos investimentos, mas Ciro, Guilherme Boulos e a candidatura do PT defendem em seus programas medidas que geram insegurança jurídica e afugentam os investidores. Qual o investidor externo vai participar de algum leilão na área do pré-sal, por exemplo, sabendo que os lotes adquiridos poderão ser desapropriados mais à frente?

A estratégia de não desagradar os eleitores e de fazer concessões às corporações religiosas leva os candidatos a contornar uma seríssima questão de saúde pública, a descriminalização do aborto. Políticas públicas, como as relativas às drogas, deixam de ser abordadas, por medo de perder votos.

Como mercadores de bondade, os candidatos conseguem ludibriar os eleitores. Mas a ressaca do pós-eleição tem um alto custo para o Brasil, aprofunda crises, gera frustrações. O day after é sempre terrível.

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Hubert Alquéres é professor e membro do Conselho Estadual de Educação (SP). Lecionou na Escola Politécnica da USP e no Colégio Bandeirantes e foi secretário-adjunto de Educação do Governo do Estado de São Paulo.

 

Mercadores de bondade

Há 50 anos os tanques esmagaram a primavera

A Primavera de Praga foi um sonho de oito meses, esmagado pelas esteiras dos tanques soviéticos

O dominicano Giordano Bruno confessou sua ingenuidade de pedir para “quem tem o poder, mudar o poder” às vésperas de ser queimado na fogueira da Santa Inquisição. Alexandre Dubeck, então Primeiro Secretário do Partido Comunista da Tchecoslováquia, escapou da fogueira da inquisição comunista depois de ter sido sequestrado e levado a Moscou para assinar um “acordo” com Leonid Brejnev, que estraçalhou a Primavera de Praga. Ali, Dubeck percebeu sua ingenuidade de querer construir o “socialismo com rosto humano”, como se fosse possível o sistema socialista se auto reformar.

A Primavera de Praga foi um sonho de oito meses, esmagado pelas esteiras dos tanques soviéticos em 20 e 21 de agosto de 1968. Não por acaso, aconteceu na Tchecoslováquia, país de larga tradição democrática. A República Checa foi o único lugar da Europa onde o Partido Comunista chegou ao poder pelo voto, obtendo a maior votação dos comunistas na Europa pós Segunda Guerra Mundial.

Apesar de sucessivos expurgos stalinistas, sempre houve vida no PC tcheco. Diferentemente da Hungria, onde uma insurreição tentou derrubar os comunistas, a Primavera de Praga não contestava o socialismo. Foi um movimento iniciado e dirigido pelas principais lideranças do PC tcheco; sobretudo por Dubeck e Ludwing Svoboda.

Os dois nada tinham de antissoviéticos. Desde os quatro anos, Dubeck morou na União Soviética e só voltou ao país natal aos 17 anos para, em 1938, integrar a resistência aos nazistas. Já Svoboda foi herói pelo Exército Vermelho, por seu papel como comandante de divisões tchecas na Segunda Guerra.

Os ventos de renovação arejaram Praga. Poderiam ter se espraiado pelos demais países do bloco socialista.

A Cortina de Ferro se sentiu ameaçada pelas reformas de Dubeck e pelo estabelecimento de uma imprensa livre. Odiada pela nomenclatura, granjeou o apoio de toda a sociedade, a exceção de velhos e carcomidos stalinistas. O “Manifesto de duas mil palavras”, assinado por intelectuais do porte de Milan Kundera e Václav Havel e apoiado dos líderes comunistas, pregava o fim do monopólio do PC.

A resposta foi a aplicação da Doutrina Brejnev, a da “Soberania Limitada”. Os países do Pacto de Varsóvia eram “livres”, desde que não pusessem em xeque sua continuidade no bloco, nem o modelo socialista. Desde julho, tropas soviéticas faziam exercício militar dentro da Tchecoslováquia. A invasão era questão de dias. Quando os tanques entraram em Praga o florescer chegou ao fim.

A Primavera de Praga e o Maio Parisiense foram os dois grandes acontecimentos históricos do ano turbulento de 1968. A seu modo, cada um voltou-se contra velhas estruturas. Os tanques soviéticos não conseguiram esmagar o sonho do “socialismo com rosto humano”. Ele ressurgiria nos partidos eurocomunistas e com Gorbatchov; outra ilusão de se reformar por dentro o sistema.

E Dubeck entrou para a história como um homem que tentou humanizar o socialismo. Fiel aos seus princípios, foi expulso do PC e por 20 anos amargou o ostracismo nos serviços burocráticos de uma exploração florestal. A história lhe fez justiça. Com a vitória da Revolução de Veludo, em 1989, voltou aclamado pelos tchecos em uma praça de Praga. E foi eleito presidente do parlamento tcheco.

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Hubert Alquéres é professor e membro do Conselho Estadual de Educação (SP). Lecionou na Escola Politécnica da USP e no Colégio Bandeirantes e foi secretário-adjunto de Educação do Governo do Estado de São Paulo.

Este artigo foi publicado originalmente no site da Revista Veja, no Blog do Noblat:

Há 50 anos os tanques esmagaram a primavera

O tratoraço do caudilho

Como todo caudilho que se preza, Lula foi implacável com quem ousou contestar seu monopólio no campo da esquerda. Mesmo seu preposto, o ex-prefeito paulistano Fernando Haddad, terá de se comportar direitinho para passar no estágio probatório estabelecido pelo morubixaba petista. Se vestir a fantasia de presidenciável antes da hora será esmagado sem dó e piedade, assim como aconteceu com Ciro Gomes.

O Partido dos Trabalhadores sempre teve concepção hegemonista e nisso tem razão o presidente do PSB, Carlos Siqueira, quando se queixa do perfil exclusivista do PT. Alianças sempre foram bem-vindas, desde que os aliados aceitassem a condição de satélite. O diferencial deste ano é que, com a prisão de Lula e sua mais do que provável inelegibilidade, o polo agregador do campo da esquerda deixou de ser natural, daí sua fragmentação inicial em quatro candidaturas.

A reaglutinação se deu a fórceps, por meio do tratoraço acionado de dentro da cadeia. Vítimas ficaram pelo meio do caminho, como Marília Arraes, candidata a governadora de Pernambuco, cujo ímpetos de insubordinação, ou de ingenuidade de acreditar que alguma coisa acontece no PT sem a aprovação de Lula, não duraram dois dias. Na democracia lulista a última palavra é sempre a do caudilho.

Os métodos utilizados por Lula não ficaram a dever aos do argentino Juan Domingo Perón, um especialista em esmagar quem desafiava seu poder de mando. Como Péron, Lula dizimou companheiros de jornada para impor sua estratégia. Ciro é hoje um mutilado de guerra, a lamuriar-se dos “conchavos, fuxicos, rasteiras e punhaladas pelas costas”. Contra tudo que os anos de janela já deveriam ter dado de experiência ao cearense, ele, candidamente, acreditou que seus mimos a Lula e ao PT seriam suficientes para liderar um bloco de esquerda.

A esquerda não superou a lulodependência, daí a pusilanimidade em relação aos planos de Lula. O PSB, uma federação de caciques regionais, entregou a cabeça de Márcio Lacerda em Minas Gerais em uma bandeja para facilitar a reeleição do governador de Pernambuco. Seu presidente resmunga contra o hegemonismo do PT, mas constrangidamente se submete a ele.

Chantageado em não ter coligação nas proporcionais com a legenda petista, o PCdoB aceitou ter Manuela d’Ávila na condição de regra três do candidato a vice-presidente da chapa de Lula. Bem, mas o PCdoB sempre se contentou com as migalhas que caem da mesa do PT.

Hegemonias quando impostas pela força costumam criar problemas, assim como abater companheiros deixam sempre sequelas insuperáveis. Hoje, Ciro é um “pote até aqui de mágoa”, Márcio Lacerda tem sangue nos olhos e muitos petistas e peessebistas estão de farol baixo, descontentes com o arreglo que rifou Marília e Márcio.

Ainda assim, Lula pode conseguir colocar um candidato-laranja no segundo turno. Mas é uma estratégia de altíssimo risco, pois o PT vai para a disputa bem menor do que em eleições passadas, incapaz que foi de costurar alianças mais amplas.

Na hipótese pouco provável de dar certo, Fernando Haddad seria o Héctor Cámpora de Lula, ele no governo e o caudilho no poder.

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Este artigo foi publicado originalmente no site da Revista Veja, no Blog do Noblat:

O tratoraço do caudilho