O ex-presidente lança novo livro para comemorar seus 90 anos
Por Hubert Alquéres
Na noite de 13 de março de 1964 Fernando Henrique Cardoso passou em frente à Central do Brasil, no Rio de Janeiro, onde João Goulart realizava o comício das Reformas de Base, sem que o ato lhe despertasse a menor curiosidade. Até então, era um jovem intelectual, voltado para a atividade acadêmica. A política passava ao largo de sua vida. No máximo, a exercia no interior da academia, muito embora tivesse relações superficiais com o PCB, com quem viria a romper quando os tanques soviéticos invadiram a Hungria em 1956. O próprio FHC se indaga “por que eu?”, quando embarca em um avião para o exílio no Chile, logo após o golpe militar.
Da leitura do seu livro de memórias “Um Intelectual na política” (editora Companhia das Letras), escrito para comemorar seus noventa anos de idade no dia 18 de junho, depreende-se que se tivesse nascido em um país de larga tradição democrática seguiria a vida acadêmica sem dar o salto para a política e dificilmente chegaria à presidência da República. O regime ditatorial instalado em 1964 mudou a rota da sua vida ao interditar o debate e instalar um clima de caças às bruxas. O então jovem professor da USP vai para o exílio logo após o golpe, onde passa quatro anos, e é aposentado compulsoriamente pelo AI-5.
Com a academia garroteada, o debate e a produção intelectual se transferem para fora dos muros das universidades. Fernando Henrique funda o Centro Brasileiro de Análises e Planejamento (Cebrap), uma usina de efervescência e de aglutinação da intelectualidade nos anos 70. E vai se encontrar com o mundo da política propriamente dito quando Ulysses Guimarães e o deputado Pacheco Chaves batem às portas do Cebrap para convidar seus intelectuais para elaborar o programa do PMDB para a eleição de 1974. Quatro anos depois disputaria sua primeira eleição e 20 anos depois se elegeria presidente da República.
Quando aceita o convite de Ulysses já tinha 43 anos e era autor de uma produção invejável, sendo, talvez o cientista brasileiro de maior projeção internacional, entre a segunda metade das décadas de 60 e 70.
Ler “Um Intelectual na Política” é revisitar um dos períodos mais ricos das ciências sociais no Brasil. É também entrar em contato com suas formulações originais no entendimento da sociedade brasileira e da própria América Latina. Dessa vasta obra, duas características se destacam: a pesquisa de campo e a análise histórico-estrutural.
Elas estão presentes no seu primeiro trabalho de fôlego, tema de sua tese de doutorado: “Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional – O Negro na Sociedade Escravocrata do Rio Grande do Sul” (editora Paz e Terra). Sua análise contesta a concepção dos modos de produção sucessivos (comunismo primitivo, escravismo, feudalismo e capitalismo). De acordo com essa tese, o escravismo no Brasil seria um modo de produção idêntico ao da antiguidade e foi sucedido pelo feudalismo. Essa concepção, com a qual Fernando Henrique rompe, era esposada pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros, do qual Nelson Werneck Sodré foi sua grande expressão intelectual. Tratava-se de uma leitura dogmática de Marx, esquematizada por Stalin em sua obra sobre o materialismo dialético e materialismo histórico, como se todas as sociedades tivessem uma mesma história e passado pelas mesmas etapas.
O lado inovador de Fernando Henrique foi entender a escravidão no Brasil a partir de uma análise histórico estrutural, daquilo que ela tinha de peculiar. Ou seja, o escravismo no Brasil inseria-se em relações sociais de produção capitalista, na qual o escravo era o capital fixo e seus exploradores eram, ao mesmo tempo, senhores de escravos e empreendedores. Esse modo de produção, similar ao do sistema de “plantation” do sul dos Estados Unidos, produzia para os mercados externo e interno.
Décadas depois, outro intelectual, Jacob Gorender aprofundaria a análise peculiar sobre o escravismo, definindo-o como um modo de produção específico, o colonial. Mas os dois coincidem na conclusão de que no Brasil a produção escravista se vincula ao mercado mundial, portanto ao capitalismo na sua fase mercantilista.
A conclusão era lógica: ora, se o escravismo brasileiro inseria-se nessa fase do capitalismo, não tinha sentido falar num Brasil de feudalismo, como entendiam intelectuais vinculados ao Partido Comunista Brasileiro. A ideia dessa corrente de um Brasil semifeudal e semicolonial desconsiderava a análise histórica. Para FHC, o grande produtor rural não podia ser enquadrado na categoria de latifundiário, bem como o trabalhador rural brasileiro não podia ser enquadrado na categoria do “camponês tradicional” tal qual os camponeses da Europa. Reconhece a existência de formas de exploração pré-capitalistas, mas num quadro de uma economia de mercado.
Assim, chegou a conclusões semelhantes às de Caio Prado Jr em sua obra “História Econômica do Brasil” (editora Brasiliense), a quem Fernando Henrique faz questão de dar crédito, por suas formulações inovadoras. E por falar em dar crédito, destaca a influência dos três pilares das ciências modernas – Karl Marx, Max Weber e Émile Durkheim – na sua formação como sociólogo. Declaradamente assume-se como discípulo de Florestan Fernandes, responsável pela formação de toda uma geração de cientistas sociais.
No seu livro de memórias, o ex- presidente nos remete também ao grande debate sobre o papel da burguesia brasileira, discutida em sua tese de livre-docência, “Empresário industrial e desenvolvimento econômico no Brasil” (editora Civilização Brasileira), escrita em 1962 e onde reflete sobre a formação da sociedade industrial “de massas” e a formação do “espírito empresarial” para a formação do país. À época a ideia hegemônica “atribuía a condição de oponentes das grandes empresas internacionais, à burguesia industrial, que além disso estaria disposta a fazer uma aliança com forças socialmente progressistas, o proletariado e os camponeses. Seria nossa revolução burguesa.”
Conclui que essa era uma visão ideológica, que não tinha anteparo na realidade. Sem negar a existência de empresários nacionalistas, como Ermírio de Morais, FHC se deu conta de que a maioria dos empresários brasileiros não estava em oposição ao “latifúndio” e ao “imperialismo”, como preconizava a esquerda hegemônica, e “tinham ligações com o capital agrário e se associava a empresas que viriam se chamar de multinacionais”. Dela, portanto, não se podia esperar um papel revolucionário como o desempenhado pela burguesia europeia na passagem do feudalismo para o capitalismo.
Fernando Henrique se projetou internacionalmente já no seu exílio no Chile, a partir do livro escrito em parceria com o chileno Enzo Falleto, “Dependência e desenvolvimento na América Latina” (editora Civilização Brasileira), traduzido em quatorze idiomas e onde estuda as relações internacionais e o processo de desenvolvimento econômico e social na América Latina. Nas memórias queixa-se de ter sido, equivocadamente, considerado como “dependentista”, por causa dessa obra.
De fato, o foco do livro não é tanto a dependência, mas sim o desenvolvimento, ponto de partida para sua crítica ao pensamento oriundo da CEPAL (a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe criada em 1948 pela ONU e onde trabalhou durante seu período no Chile) que via a América Latina estagnada em função das relações de troca internacionais. O pensamento cepalino só concebia a possibilidade de crescimento na região a partir de um desenvolvimentismo autônomo. Mostra que a despeito da dependência das economias periféricas em relação às economias centrais, havia crescimento nessas regiões.
Polemiza então com a “teoria de dependência” de Rui Mauro Marini, para quem o desenvolvimento na América Latina e países periféricos se dava à base da super exploração do trabalho e só seria possível superar o subdesenvolvimento pela ruptura revolucionária. Em particular critica a visão de Rui Marini que qualificava países como o Brasil de “sub imperialista”.
À concepção da revolução social como pré-condição para o desenvolvimento na América Latina Fernando Henrique contrapõe o seu conceito de “dependência associada”, no qual o capital nacional participa do processo de desenvolvimento de uma forma associada com o capital internacional e não em contraposição a ele. Em outras palavras: apesar da dependência, havia crescimento em países como o Brasil. Isso foi fundamental para entender o chamado “milagre econômico” do regime militar, fenômeno que as teses catastrofistas se recusavam a reconhecer.
A leitura de um “Um intelectual na política” nos põe em contato com um pensador não dogmático, que foge de análises simplistas ou alarmistas. Assim, fez distinção entre fascismo e autoritarismo. A polêmica se dava em torno do caráter da ditadura militar. Para parte da esquerda o regime era fascista. O primeiro a reconhecer o caráter fascista da ditadura foi um brilhante intelectual comunista, Armênio Guedes.
FHC chegou a outra conclusão. A ditadura era autoritária, não fascista, regime que pressupõe partido único. Não era a única diferenciação. No caso brasileiro, realçava, a ditadura manteve um mínimo de institucionalidade, com a existência de um partido de oposição e de um parlamento mesmo que usurpado em suas prerrogativas. Sim a ditadura cassava parlamentares, mas não suprimiu o parlamento, bem como não suprimiu totalmente as eleições.
Não se tratava de uma mera discussão acadêmica. Da análise concreta da natureza do regime se abstraia o caminho a seguir e a possibilidade de realizar uma oposição realista em uma estratégia de acúmulo de forças por meio de uma “guerra de posições” na sociedade.
O debate se dá no momento em que a esquerda armada estava dizimada e MDB após praticamente se autodissolver nas eleições de 1970 ressurge das cinzas com a retumbante vitória nas eleições de 1974.
A forma como se deu a superação da ditadura, implodida a partir do próprio colégio eleitoral que havia criado e pela combinação da via institucional com a pressão das ruas e das fábricas, confirmou sua análise dos meados dos anos 70. Vamos assistir nos anos seguintes as greves do ABC, as vitórias do MDB em 78 e 82, a campanha das diretas e a eleição de Tancredo Neves.
Mas aí Fernando Henrique Cardoso já não é apenas o intelectual da academia que interpreta como poucos a realidade, alguém que estuda as características estruturais da sociedade brasileira, dos dilemas que herdamos do passado e dos possíveis caminhos para sua superação. É sujeito da história em uma trajetória iniciada como suplente de senador em 1978.
Anos depois foi eleito e reeleito presidente da República em primeiro turno, sem nunca deixar de ser um intelectual, como faz questão de frisar neste seu novo e indispensável livro.
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Este artigo foi publicado originalmente no portal JOTA: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/revisitando-fernando-henrique-cardoso-27062021