Síndrome de McGovern

Bernie Sanders na ponta

Por Hubert Alquéres 

O favoritismo do senador e “socialista democrático” Bernie Sanders, a ser confirmado na super-terça de 3 de março – quando quatorze estados americanos realizam ao mesmo tempo suas primárias -, está tirando o sono da cúpula do Partido Democrata. Depois de quarenta e oito anos, os democratas podem ter um candidato mais de esquerda à Presidência dos Estados Unidos, a exemplo do que aconteceu em 1972, com a candidatura de George McGovern. O temor é que a história se repita.

À época, McGovern ganhou as primárias, mas depois foi massacrado pelo republicano Richard Nixon, perdendo a disputa em nada menos que 49 estados. Foi a derrota mais humilhante amargada pelo Partido Democrata em toda sua história.

Nixon era um competidor duríssimo de ser batido. O então presidente disputava a reeleição, beneficiado pelo bom desempenho da economia americana e pelo sucesso de sua política externa, cujo principal êxito foi o reatamento das relações diplomáticas com a China. Seu opositor, em vez de falar para o conjunto da nação, fez uma campanha voltada para setores que se sensibilizavam com seu discurso contra a guerra do Vietnã. Não era pouco, mas a onda pacifista dos anos 70 não evitou o vexame eleitoral de McGovern.

O temor atual é que Bernie Sanders repita o feito, com o seu discurso anti-capitalista, isolacionista e populista. Como McGovern, Bernie não goza da simpatia da cúpula partidária e, se confirmado, terá um páreo duro pela frente. Seu adversário Donald Trump é franco favorito e disputará a reeleição beneficiado pela inflação baixa, economia em crescimento e o menor índice de desemprego da história dos Estados Unidos. Sua política externa agressiva e anti-imigrante também soma pontos internamente.

Em circunstâncias normais, os democratas já teriam uma pedreira pela frente. A dificuldade se multiplica se escolherem um candidato cujo discurso afugenta o eleitorado moderado em um país onde o capitalismo faz parte do DNA da população.

O favoritismo de Sanders na disputa interna decorre da pulverização dos moderados, divididos em três nomes mais fortes – Michael Bloomberg, Joe Biden e Pete Buttigieg -, sem que nenhum deles tenha ainda conseguido empolgar o partido.

O bilionário e ex-prefeito de Nova York, Bloomberg, corria por fora mas teve um desempenho sofrível na estreia dos debates das primárias. Ele tem poder econômico e um histórico de doações a causas, como o controle de armas e defesa do meio ambiente, ou em políticos ligados à sua agenda. Em 2018, gastou US$ 100 milhões para ajudar o Partido Democrata a recuperar a maioria na Câmara, sendo que, dos 21 candidatos que receberam doações, 15 eram mulheres. A doação de US$ 1,8 bilhão feita recentemente pelo magnata à Johns Hopkins University é a maior da história dos Estados Unidos com destino a uma instituição de Ensino.

O vice presidente de Barack Obama, Joe Biden, perdeu o fôlego ao ser derrotado nas primárias já realizadas. Está cambaleante. O jovem Pete Buttigieg ganhou espaço com um discurso moderno e afiado. Ele é formado em Harvard, serviu no Afeganistão, foi consultor da McKinsey e começou sua vida pública como prefeito de South Bend aos 29 anos. Se não vencer as prévias, já é considerado um grande quadro para os democratas.

Se Bernie Sanders conquistar a legenda, qual a explicação para que, no principal país capitalista do planeta, os democratas tenham escolhido um candidato de esquerda.

A resposta pode estar na polarização e em um fenômeno que ocorreu nos partidos de centro-esquerda a partir da emergência do nacional-populismo. Em muitos deles foram fortalecidas correntes que advogam que a única maneira de impedir o avanço do populismo de direita é com um forte populismo de esquerda. A tese encontrou seu embasamento teórico no livro “Por um populismo de esquerda”, da cientista política pós marxista belga, Chantal Mouffe.

A ideia de um populismo de esquerda como estratégia para enfrentar a “crise do neoliberalismo”, como advoga Chantal, levou a desastres. O maior deles ocorreu no Partido Trabalhista inglês. Sob a liderança de Jeremy Corbyn, os trabalhistas deram uma guinada à esquerda, defendendo a reestatização de empresas privatizadas. Seu discurso voltado para nichos das metrópoles não dialogou com a Grã Bretanha profunda.  Resultado: foi humilhado pela vitória de Boris Johnson e do Brexit. Amargou a maior derrota eleitoral de seu Partido desde 1935.

Sanders tem perfil para repetir o erro de Corbyn. Seu discurso encontra receptividade na juventude e em nichos identitários das metrópoles, mas não dialoga com a América profunda. Mark Lilla, intelectual de esquerda, em seu livro “O progressista de ontem e o do amanhã” responsabilizou o foco na agenda identitária pela derrota de Hillary Clinton, em 2016.

Bernie Sanders é o adversário preferido por Trump. Como disse o ex-primeiro ministro inglês Tony Blair, toda vez que o populismo de direita for enfrentado pelo populismo de esquerda, ganha o populismo de direita. Ou não foi assim na eleição de Bolsonaro?

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Hubert Alquéres é membro da Academia Paulista de Educação, do Conselho Estadual de Educação e da Câmara Brasileira do Livro. Escreve toda 4ª feira no Blog do Noblat da revista Veja: https://veja.abril.com.br/blog/noblat/sindrome-de-mcgovern-por-hubert-alqueres/ 

Liberticidas

Hans River mentiu à CPI, ao caluniar a jornalista. Bolsonaro deu fórum de verdade às suas palavras abjetas.

Por Hubert Alquéres

Liberdades que nos são caras, conquistadas com tantos sacrifícios, vêm sofrendo ataques quase diários, muitas vezes por figuras obscuras que saem do anonimato para chocar a nação. Mal esfriou o caso da censura a clássicos da nossa literatura como “Os Sertões” de Euclides da Cunha, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis, ou “Macunaíma”, de Mário de Andrade, surge um novo e espantoso episódio. A liberdade de imprensa – sem a qual não se pode falar em ordenamento democrático – volta a ser agredida, desta vez pelo depoimento de Hans River do Rio Nascimento na CPMI das Fake News.

A ofensa, por sí só gravíssima, foi amplificada de forma ultrajante pelo presidente Jair Bolsonaro. Sem qualquer respeito ao decoro e à liturgia, ele ultrapassou todos os limites ao difamar a jornalista Patrícia Campos de Melo, ofendendo ainda todas as mulheres com seu machismo chulo.

Nunca um presidente da República desceu tanto como nesse lamentável episódio que envergonha o país. Talvez tenha perdido o controle dos nervos com o noticiário sobre a morte do capitão miliciano Adriano Nóbrega, ou escolhido o caminho do insulto para encobrir manchetes que o desagradam.

O liberticida Hans River mentiu à CPI, ao caluniar a jornalista. Bolsonaro deu fórum de verdade às suas palavras abjetas.

A infâmia é tão absurda, que seria absolutamente desnecessário defender a jornalista se não estivéssemos vivendo tempos de ignorância e do uso da mentira com fins intimidatórios e de destruição de reputações.

Mais do que apenas defendê-la das acusações sórdidas, o momento exige defesa da liberdade de imprensa. É ela que foi ofendida, é ela que constantemente tem sido agredida por um presidente que dá banana aos jornalistas, encerra de forma autoritária entrevistas e manipula verba publicitária com fins persecutórios aos meios de comunicação que não se dispõem a fazer coberturas chapa-branca.

Bolsonaro nutre um ódio particular à TV Globo e ao jornal Folha de S.Paulo, mas sua guerra é contra a liberdade de imprensa. Até agora, já proferiu cerca de 120 ataques a meios de comunicação e a seus profissionais. Suas ofensas são amplificadas pelas brigadas virtuais do bolsonarismo, numa tentativa de impedir que jornalistas exerçam sua função de investigar e informar.

No campo da cultura, a censura está de volta. Não da forma institucional, mas pela manipulação de verbas e da utilização enviesada de espaços públicos. Em nome da defesa de “valores cristãos” centros culturais públicos passaram a adotar filtros ideológicos e deixaram de exibir peças teatrais, filmes ou qualquer evento cujo conteúdo desagrade os novos cruzados.

Cultura virou trincheira da guerra contra o “marxismo cultural” e da defesa dos “valores cristãos”. O marcatismo tupiniquim criou seu index. Ícones como Chico Buarque de Holanda e Fernanda Montenegro são vistos como malditos. A monumental produção cultural de um povo é tachada de esquerdista por quem se julga com a missão divina de criar uma “arte heróica, nacional e cristã”.

Os direitos humanos, cuja observância é definidora do estágio civilizatório de um país, também são alvos de deboche e desrespeito. A ideologia oficial o vê aplicável apenas aos “cidadãos do bem”. Nessa categoria mental, um sicário como Adriano Nóbrega, é alçado à condição de herói e inocentado pelo presidente por não ter sentença transitada em julgado.

O péssimo exemplo vem de cima. O livro de cabeceira de Bolsonaro é “A verdade sufocada”, do torturador Brilhante Ustra, outro herói do presidente. E ele não está só nessa subversão de valores na qual torturados viram algozes e torturadores vítimas. O general Luiz Eduardo Rocha Paiva, conselheiro da Comissão da Anistia, leva o livro de Ustra para orientar seu voto nas reuniões da comissão.

Como o presidente não dá exemplo, os liberticidas se sentem estimulados para conspirarem contra as liberdades. Seu próprio clã defende o AI-5 ou dissemina mentiras nas redes sociais. Tão ou mais grave do que as infâmias ditas foi a panfletagem em defesa de Hans River nas redes pelo deputado e filho do presidente, Eduardo Bolsonaro.

Hans River não é um lobo solitário. A ele somam-se torquemadas de esquina que associam o rock às drogas e ao satanismo, fazem elegia à escravidão, quando não psicografam Goebbels. Estão encastelados no poder, em casamatas como as da Educação e da Cultura, e no próprio Palácio do Planalto.

PT: das massas ao partido bolha

O PT nasceu como expressão da luta de uma classe operária de pouca cultura política

Por Hubert Alquéres

Apoiadores do ex-presidente Lula em ato em frente ao Sindicato dos Metalúrgicos, em São Bernardo do Campo-SP Kaio Lakaio/VEJA

O ABC paulista tinha 250 mil metalúrgicos quando o Partido dos Trabalhadores foi criado em 10 de fevereiro de 1980. Naquela época carro tinha carburador, as indústrias se organizavam à base do modo fordista de produção e globalização era uma palavra desconhecida, assim como automação. O Brasil era um país largamente católico, com televisão de tubo e telefonia fixa; a sociedade se estruturava em castas e, de acordo com os cânones marxistas, os trabalhadores eram a classe redentora, que emanciparia a si e a todos.

O PT nasceu como expressão da luta de uma classe operária de pouca cultura política, recém advinda do campo assim como a sua maior liderança, Lula. O obreirismo levava o PT à aversão da política, como aconteceu quando se recusou a participar da eleição de Tancredo Neves, símbolo do fim da ditadura militar.

A despeito do seu esquerdismo infantil, o PT constitiu-se em um partido de massas. Rudimentar, mas de massas. Sua estratégia jacobina de ser diferente “de tudo o que está aí” lhe deu musculatu. Mas, para se erigir em poder se igualou “ao que estava aí”.  Os métodos que tanto criticava quando adotados pelos “partidos bugueses” foram decisivos para ser hegemônico por quase dezesseis anos. Na esquerda, essa hegemonia era incontestável.

Quarenta anos se passaram e hoje o ABC paulista possui menos de cem mil metalúrgicos; o chão de fábrica da era fordista deu lugar à automação; as classes se fragmentaram e os trabalhadores industriais perderam densidade, assim como a própria indústria. E a antiga classe operária hoje vota na direita, aqui e lá fora. Na capital do petismo, São Bernardo, Jair Bolsonaro massacrou Fernando Haddad na eleição de 2018.

Nessa sociedade de serviços e de deslocamento do polo dinâmico do capitalismo para as empresas tecnológicas, o PT e suas lideranças tateiam no escuro, sem resposta à famosa pergunta de Lenin: o que fazer?

Não responde porque Tarso Genro, um de seus quadros históricos, tem razão quando diz que “o PT tornou-se obsoleto”.

Fala em ocupar as ruas – como pregou Lula na comemoração dos 40 anos do partido -, em reconectar-se com a juventude e com os evangélicos, mas mantém o velho e desbotado discurso. Nas relações trabalhistas está preso à defesa arraigada da CLT da era varguista, ignorando as novas relações decorrentes da quarta revolução industrial.

Quando o Partido dos Trabalhadores foi fundado, a expectativa de vida dos brasileiros era de 62,5 anos. Hoje é de 76,3 anos. Indiferente a tamanha mudança, Lula e seu partido se comportam como força conservadora resistente à reforma pevidenciária. A coerência doutrinária vai às favas quando se trata dos seus: nos estados, os governadores petistas estão fazendo reforma da previdência. Não porque são neoliberais, mas porque é uma imposição da realidade.

O “contra tudo que está aí” não é mais a estrada para o poder como aconteceu no passado. Sem fazer seu aggiornamento e seu acerto com os próprios erros, o PT enclausurou-se numa bolha. De um lado, disputa com o PSOL os nichos identitários, deixando de falar para todos os brasileiros e, de outro, não abre mão de seu projeto de poder, insistindo no “nós contra eles”.

Ao sair da cadeia, Lula perdeu a oportunidade de se apresentar como pacificador do país. O sectarismo político o leva a considerar de “direita” e “neoliberal” as forças políticas e personalidades que não estão sob sua guarda. Nessa moldura são enquadrados Tábata Amaral, Luciano Huck, Fernando Henrique Cardoso ou movimentos cívicos que oxigenam a política poluída pelos governos lulopetistas.

Em vez de o PT pregar a paz prega o acirramento dos conflitos, na vã ilusão de que, por meio de uma “frente de esquerda” liderada por Lula, Bolsonaro será derrotado em 2022. Mal percebem que é o adversário preferencial da direita na próxima sucessão presidencial.

Sem unanimidade na esquerda, Lula começa a ser contestado até mesmo por petistas como o governador da Bahia, Ruy Costa. Sua canditadura também não empolga antigos parceiros da esquerda. Pragmaticamente, PDT, PSOL, PSB não querem estar em 2022 no palanque do candidato do “ão”: mensalão, petrolão, prisão.

Há quarenta anos, Lula era uma liderança inconteste dos trabalhadores. Hoje é uma estrela decadente. No horizonte da esquerda uma estrela em ascensão é Flávio Dino, governador do Maranhão e político aglutinador com a qualidade do diálogo.

A verdade é que o Partido dos Trabalhadores não é mais um partido de massas. É um partido-bolha.

Sem luz no final do túnel

A Educação está na iminência de cair num buraco negro

O presidente Jair Bolsonaro e seu ministro da Educação deveriam concentrar energias para enfrentar o desafio da Quarta Revolução Industrial, onde o conhecimento é o grande divisor de águas na batalha tecnológica.

O governo perde tempo em não articular o consenso em torno de um projeto educacional para o Brasil. A falta de dinamismo na educação impacta na competitividade e produtividade do país, dificultando nossa inserção na economia mundial.

E não será possível realizar o que o momento exige priorizando uma agenda ideológica, elegendo professores como inimigos da Educação, estigmatizando instituições de ensino.

É neste quadro que o ano letivo começa. Os problemas são vários: falta de foco na aprendizagem, evasão escolar, baixa qualidade do ensino. Quase 50% das escolas do país sequer tem esgotos e 29% não tem água, para não falar de outras carências, como biblioteca, sala de aula, internet, laboratórios, remuneração e formação continuada dos professores.

O mais urgente: não há garantia sobre como será feito o financiamento do ensino básico. Engenhosamente, em 1996 o então ministro Paulo Renato Souza criou um sistema compartilhado entre União, estados e municípios – o Fundef – que assegurou recursos para os sistemas públicos de ensino, beneficiando professores e mirando a qualidade da educação. Crítico do Fundef quando era oposição, o PT se rendeu à sua concepção, ampliando-o ao ensino médio, com a criação do Fundeb no governo Lula.

Pois bem, a Educação está na iminência de cair num buraco negro tendo em vista que o Fundeb pode deixar de existir por responsabilidade única e exclusiva de quem deveria liderar o processo: o ministro da Educação.

A relatora da renovação do Fundeb, deputada professora Dorinha (DEM/DF), parlamentares, educadores, gestores e a sociedade civil chegaram a um projeto de lei que trâmita na Câmara que chegou a um consenso, após três anos de debates. Com a concordância do atual ministério da Economia, o projeto amplia a responsabilidade da União de 10% para 15% e estava em condições de ser votado em tempo hábil.

De última hora, o ministro Abraham Weintraub, anunciou sua intenção de zerar o jogo sob o pretexto de que não gostou do projeto pactuado. Ele afirma que irá elaborar e enviar um outro projeto ao Congresso Nacional. Começar da estaca zero é a certeza de não aprovar o novo Fundeb em 2020.

Esse é o grande problema de Weintraub, para além de sua incompetência e de sua perda de tempo combatendo moinhos ideológicos, o ministro não tem a dimensão do que é estratégico, não é um construtor de consensos, não possui empatia com a área e muito menos capacidade de liderança.

Ao contrário, entra em conflito com todos – inclusive com o Congresso Nacional -, como se fosse possível aprovar algo no Parlamento que não seja pela via do entendimento. Deveria ter tomado aulas com seu colega Paulo Guedes, que acabou por entender como o jogo é jogado e se convenceu em ser parceiro do Congresso para a aprovação da Reforma da Previdência.

Weintraub já deu provas soberbas de que é o homem errado no Ministério e não haverá luz no final do túnel enquanto a grande palavra de ordem do bolsonarismo para a Educação for “#ficaWeintraub”.

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Hubert Alquéres é membro da Academia Paulista de Educação, do Conselho Estadual de Educação e da Câmara Brasileira do Livro. Foi professor na Escola Politécnica da USP e no Colégio Bandeirantes. Escreve às 4as feiras no site da revista Veja onde este artigo foi publicado em 05 de fevereiro de 2020: https://veja.abril.com.br/blog/noblat/sem-luz-no-final-do-tunel/