Uma voz sem moderação

O Brasil saiu das urnas dividido ao meio. A solenidade de diplomação de Lula e de Geraldo Alckmin era uma oportunidade para o novo presidente acenar para a pacificação nacional. O discurso escrito que tinha em suas mãos parecia ir nessa direção. Mas Lula resolveu ignorar a peça escrita por várias mãos e partiu do improviso. Sua oratória inflamada pode ter agradado ao seu eleitorado cativo, mas só serviu para perpetuar a polarização que vem fazendo da política brasileira um verdadeiro campo de guerra.

Foi como se a diplomação representasse a largada para um terceiro turno entre Lula e Bolsonaro, e Lula continuasse no palanque eleitoral. A liturgia do ato, tão fundamental em momentos em que é necessária a observância do ritual da institucionalidade, foi usada para realimentar o clima de confrontação que deu o tom da disputa presidencial. Como observou o jornalista Igor Gielow, a peça oratória de Lula ressuscitou o “nós contra eles” e a “herança maldita”. Talvez como vacina para não ver a aprovação de seu governo escorrer entre os dedos, quando o choque de realidade se impor.

Diga-se de passagem, Lula não foi o único responsável pelo clima de confrontação retroalimentado na diplomação. O presidente do TSE também adotou um tom que contribuiu para recolocar o clima da eleição. Óbvio, o efeito disso é insuflar o outro lado, aumentando, assim, a possibilidade de hordas de desordeiros incendiar a pradaria, como os tumultos promovidos por bolsonaristas em Brasília na noite da mesma 2ª feira. A situação faz acender o sinal amarelo.

As palavras conciliação, união, pacificação estiveram absolutamente ausentes no discurso de Lula. Em vez disso o presidente diplomado associou o povo brasileiro aos seus eleitores, nivelando-se a Jair Bolsonaro que confunde seus adeptos com o povo brasileiro. Dessa maneira, não temos um povo uno, com uma mesma comunhão de destino.

Autorreferente, afirmou que a democracia retornou com a sua eleição. Ora, foi a existência de uma democracia com instituições resilientes que possibilitou sua eleição, a despeito das incursões golpistas dos últimos tempos. Lula não é o marco temporal da democracia brasileira. Ela restabeleceu-se com a transição de 1985 e vivemos, desde então, o maior período da nossa história republicana sem quarteladas ou intervenções.

Fez mais, associou o capital financeiro a Bolsonaro, esquecendo-se das manifestações desse setor em defesa da democracia e da lisura das urnas. Estigmatiza, assim, um setor importante e nevrálgico do mercado, que já anda desconfiado quanto ao compromisso de Lula com a responsabilidade fiscal. Basta ver a queda da Bolsa de Valores na esteira da indicação de Aloizio Mercadante para o BNDES. Fato que contraria a lei das estatais e obriga Lula a fazer incursões para que a lei seja alterada.

Onde Lula quer chegar com sua pregação imoderada? O sucesso de seu governo depende na razão direta de sua capacidade de reunificar o país e exercer um governo pautado na moderação, sem pregações ideológicas inúteis e voltado para a solução dos reais problemas do país.

O fato de receber um governo desordenado em várias áreas, fruto de uma gestão caótica, só o obriga a capitanear um amplo governo de união nacional, o que pressupõe deixar para trás posturas hegemonista, marca do PT, em governos passados.

Nesse sentido, causou estranheza a ausência de Simone Tebet no ato da diplomação. Justamente Simone, a quem Lula reconheceu como fundamental para sua vitória no segundo turno. Até segunda ordem, parece que algo incomodou profundamente a senadora que teve quatro milhões e meio de votos na disputa presidencial.

Esse é o nó da questão. O presidente eleito não sepode dar ao luxo de perder aliados, na montagem do seu governo. Seu adversário sai do poder com uma aprovação maior do que a rejeição. A correlação de forças é ligeiramente favorável a Lula e pode ser revertida a qualquer barbeiragem que cometa.

A hora é do exercício da moderação na política. E já passou da hora de Lula descer do palanque.

O legado dos tucanos para a educação paulista

Depois de 28 anos, a educação em São Paulo deixará de ser comandada por governantes do PSDB, em consequência do exercício da saudável alternância do poder. Natural e legítimo, o governo a se iniciar em primeiro de janeiro vai imprimir a sua concepção e ditar novos rumos. Isto é próprio da democracia. Mas receberá um sistema educacional estruturado, com avanços significativos nestas quase três décadas. Não é exagero definir o período como o de maiores transformações na educação paulista.

Quando Mario Covas assumiu o governo iniciou-se no Estado o primeiro grande ciclo de reformas educacionais estruturantes. À época, o ensino básico paulista estava estagnado e desorganizado, com altos índices de evasão escolar, retroalimentada pela cultura da repetência. Para onde se olhasse os indicadores eram alarmantes. A distorção idade/série tinha dimensão mastodôntica. No fundamental era, em 1998, de 30,9%, e no médio chegava a 48%. Hoje esse indicador caiu para 8,3% e 14,2%, respectivamente. A queda se deu de forma sustentada.

Apesar de a Constituição de 1988 definir o ensino fundamental como obrigação do Estado em conjunto com os municípios, a secretaria estadual concentrava 89% da rede pública desse ciclo. Dos 645 municípios de São Paulo, apenas 72 tinham alunos do ensino fundamental, tímidos 11% do total.

Na gestão da então secretária da Educação Rose Neubauer inicia-se um vigoroso processo de municipalização do ensino fundamental. Atualmente os municípios atendem a 56% dos estudantes e o estado ficou com 44%. No mesmo período, zerou-se o número de alunos dos anos finais do ensino fundamental que estudavam no período noturno, um fator estimulador da evasão escolar e da defasagem idade/série.  Em 1995, no ensino médio, 75,8% dos alunos estudavam à noite. Hoje, são 28,5%. Neste período, a jornada diária dos alunos que era de 3h ou 4h passou para 5h de aula nas escolas regulares.

Tais avanços foram possíveis porque a Secretaria de Educação reorganizou a rede com base em três eixos: racionalização organizacional, mudança nos padrões de gestão e melhoria na qualidade de ensino. Chegava-se, assim, ao fim dos tempos das nomeações políticas de gestores regionais – o critério passou a ser exclusivamente técnico. Com a criação do sistema estadual de avaliação, o Saresp, políticas públicas passaram a estar alicerçadas em evidências científicas.

Tais mudanças estavam em sintonia com as chamadas reformas educacionais de primeira e segunda geração, cujo eixos, segundo Olavo Nogueira, autor do livro “Pontos fora da curva”, foram a universalização do ensino e a criação de um sistema de avaliação.

A educação voltaria a viver um segundo momento de grandes transformações a partir de 2019, quando o governo do Estado, na gestão João Doria-Rodrigo Garcia e do secretário Rossieli Soares, implementa um conjunto de políticas públicas que estão redesenhando o chão da escola e fazendo emergir uma nova mentalidade no ambiente escolar. Entre elas, a forte expansão do Programa do Ensino Integral.

Em 2018, havia apenas 364 escolas de ensino integral no Estado, 6% da rede estadual de ensino. Em 2022 já eram 2.060. Ou seja, 40% da rede. E o ano letivo de 2023 se iniciará com 2.311 escolas de ensino integral. Nelas, o aluno tem jornada diária de 7h ou 9h.

São Paulo foi o primeiro Estado a implementar o Novo Ensino Médio, possibilitando aos nossos jovens, além dos conteúdos comuns obrigatórios, escolher diferentes itinerários formativos mais adequados à sua vocação, assim como à construção de seu projeto de vida. Além disso, eles são estimulados a adquirir habilidades socioemocionais capazes de pavimentar tanto a sua realização profissional quanto pessoal.

Um terceiro programa tem feito toda a diferença: o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), talvez a maior prova de que a diretriz da Secretaria, desde os idos de 1995, de estimular a autonomia das escolas não é um mero exercício de retórica. Por meio do PDDE, nos últimos 4 anos foram repassados R$ 3,5 bilhões às escolas, que decidiram como e onde deveriam ser investidos. Apostar na comunidade escolar, constituída por diretores, professores, alunos e pais de alunos, foi o caminho para otimizar a aplicação de recursos porque eles conhecem as reais necessidades de sua escola.

O esforço compensou. Segundo o Ideb-2021, realizado em plena pandemia, com dados revelados recentemente, em São Paulo não houve perda de proficiência de português e matemática. E o Estado ficou em primeiro lugar nos anos finais do ensino fundamental e em terceiro nos anos iniciais.

Naturalmente, ao longo dos últimos 28 anos a trajetória da educação paulista não se deu de forma linear, observando-se momentos de descontinuidade das políticas adotadas. O próprio PDDE, retomado recentemente, é um exemplo disto.

Mas o balanço do período em que os governos do PSDB estiveram à frente do ensino básico do Estado é essencialmente positivo. As políticas públicas geradas não foram políticas de um ou outro governo e sim de Estado. O Novo Ensino Médio, a expansão do Ensino Integral e o PDDE, para citar apenas três das políticas públicas implementadas, não são patrimônio desse ou daquele governante, desse ou daquele partido. São uma conquista da sociedade e em especial dos seus maiores beneficiários, os estudantes, que têm direito a uma educação de melhor qualidade, como determina a Constituição-Cidadã.

Certamente essas políticas podem e devem ser aprimoradas pelo novo governo, bem como novas ideias contribuirão para a educação paulista continuar em sua marcha ascendente. Mas espera-se – e nisso somos otimistas – que a nova gestão não caia na tentação de querer começar tudo do zero. Um dos grandes males responsáveis pelo atraso educacional no Brasil tem sido, ao longo dos anos, o abandono de boas políticas públicas quando um novo governo se instalava.

Para não comprometer o futuro dos nossos jovens São Paulo não pode repetir o erro da descontinuidade do que está dando certo.

O inadiável retorno aos quarteis

A doutrina do exército como o grande mudo foi introduzida no Brasil pela Missão Militar francesa, comandada pelo então general Maurice Gamelin. A missão chegou ao Brasil em 1920 para promover a modernização e profissionalização das Forças Armadas. Entendia o seu chefe que os militares deveriam se dedicar exclusivamente às suas funções profissionais e via na introdução da política nos quarteis um fator de corrosão e de quebra da hierarquia e disciplina. Compartilhada pelo marechal Cândido Rondon, a ideia de Gamelin não prosperou e o Brasil viveu um longo ciclo de intervenção militar na vida política nacional, muitos deles traumáticos e de longa duração, como foi o caso dos 21 anos de regime militar.

Esse ciclo foi interrompido pela transição democrática de 1985, possibilitando ao país viver o maior período da sua história republicana sem golpes ou quarteladas. Nem mesmo a morte de Tancredo Neves desviou os militares da rota de se manter nos quarteis e a posse de José Sarney ocorreu na mais absoluta tranquilidade. Isso foi possível graças à liderança do general Leônidas Pires Gonçalves, o avalista da posse do vice-presidente eleito junto com Tancredo.

O retorno organizado dos militares aos quarteis fez bem às Forças Armadas, tornando-as uma das instituições mais respeitadas pelos brasileiros. O paradigma inaugurado em 1985 começou a ser quebrado com a assunção do general Eduardo Villas Boas, tendo como pano de fundo insatisfações dos militares com o relatório da Comissão da Verdade, durante o governo Dilma Roussef. Coincidentemente, ou não, desenvolve-se a partir desse episódio a aproximação do então deputado Jair Bolsonaro com militares de alta patente.

Os quatro anos do governo Bolsonaro foram anos de ativismo político dos militares, com a hipertrofia de sua presença no governo em funções estranhas à sua vocação e ao seu papel constitucional. Houve resistência ao aparelhamento das Forças Armadas e o ex-comandante do Exército Edson Pujol é um exemplo de militares que entendem a instituição a qual pertencem como de Estado e não de governo. Por isso mesmo foi demitido, assim como o então ministro da Defesa, general Fernando Azevedo.

Desde a derrota eleitoral de Bolsonaro, as Forças Armadas têm sido submetidas a uma situação de estresse e de anormalidade. Não é natural sua cadeia de comando divulgar quatro notas oficiais sobre as eleições e o quadro político. Bolsonaristas insatisfeitos com o pronunciamento das urnas pregam o golpe em frente aos quarteis. Com o incentivo de Jair Bolsonaro, seu partido, o PL, dá munição aos manifestantes ao ingressar no TSE com uma contestação parcial às urnas eletrônicas.

O Brasil vive a mais longa e a mais agônica transição, desde a redemocratização do país. Quanto mais se aproxima a posse do novo presidente, mais estridente e mais radical são os atos em frente a quarteis, chegando-se ao ponto de se pregar a convocação de   colecionadores, atiradores desportivos e caçadores a se insurgirem, de armas nas mãos à diplomação do presidente eleito, no dia de sua posse.

Mais grave:  221 oficiais de reserva, entre eles brigadeiros e almirantes e generais, fazem um manifesto pedindo aos comandantes militares que intervenham contra o resultados das urnas. A cadeia de comando parece estar de mãos amarradas e se vê na contingência de fazer ouvido de mercador à pregação feita sob suas barbas, como é o caso deste manifesto de oficiais de alta patente da reserva.

Mas entre a postura condescendente e o apoio, há uma distância. Segundo reportagem da CNN Brasil, a cadeia de comando começa a perceber os efeitos corrosivos na tropa, pois os atos em frente aos quarteis “estariam gerando problemas de segurança e discussões internas dentro das corporações, uma vez, que segundo fonte que participou do encontro (dos três comandantes das FFAA com Bolsonaro), militares inconformados com o resultado das urnas estariam fomentando protestos com a participação de parentes e amigos.

É a “Lei Gamelin” se manifestando mais uma vez. Quando a política entra por uma porta nos quarteis, a disciplina e a hierarquia saem pela outra. Assim, até para a preservação de seus valores, o segundo retorno dos militares aos quarteis é inadiável. Só desta forma é que poderão se dedicar exclusivamente às suas funções constitucionais. O restabelecimento do primado do poder civil é condição necessária para que isto aconteça e se materializa pela escolha de um novo ministro da Defesa que não venha do mundo castrense.

Quanto maior a demora de Lula em anunciar o nome do futuro ministro da Defesa, maior será a instabilidade desse período de transição entre governos.

O vácuo é extremamente perigoso em área tão sensível. O presidente eleito parece ter entendido isso. Queimou a etapa de formar um grupo de transição da defesa ao anunciar que na próxima semana divulgará os três comandantes militares de seu governo.

A tendência é a observância do critério da antiguidade, tão caro às Forças Armadas. No pacote virá também o anúncio do novo ministro da Defesa, muito provavelmente o ex-presidente do TCU José Múcio Monteiro, um conservador com trânsito em todos os campos políticos. Da esquerda até Bolsonaro, que o queria como ministro de seu governo.

Espera-se que o espírito conciliador de José Múcio e a indicação dos novos comandantes das três armas contribuirão para que a passagem do bastão na cadeia de comando venha a ser o primeiro passo para o impostergável retorno dos militares aos quartéis.

Só assim o exército voltará a ser o grande mudo, como defendia o marechal Cândido Rondon.

O ICMS da educação

Em seu livro Pontos fora da Curva, Olavo Nogueira Filho, diretor-executivo do Todos Pela Educação – destaca o ICMS educacional como importante mecanismo para alavancar a qualidade do ensino. De acordo com o autor, é possível dar apoio financeiro as escolas condicionado à melhoria de seus resultados. Olavo baseou-se na experiência exitosa do Ceará, adotada em 2007 como parte do seu programa Alfabetização na Idade Certa. Foi o primeiro estado a alocar para a educação parte da cota do ICMS destinada aos municípios.

O reparte tem como critério a melhoria da aprendizagem dos alunos do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental, matriculados nas redes municipais. Já existem evidências científicas consistentes sobre seu o impacto positivo na alfabetização na idade certa. Por meio deste incentivo, o Ceará saltou para as primeiras posições no Ideb. Na apresentação do livro, o pesquisador Fernando Abrucio realça a importância do ICMS da Educação, como parte integrante das reformas educacionais de terceira geração levadas a cabo por governos subnacionais.

A experiência do Ceará se espalhou pelo país, principalmente a partir da determinação do Congresso Nacional de torná-lo uma obrigação legal, quando da aprovação do Novo Fundeb, em 2020. Foi estabelecido o prazo de até agosto de 2022 para os estados se adaptarem à lei. Desde então, 24 unidades da federação já aprovaram, sendo São Paulo o mais recente.

Quando assumimos a Secretaria Estadual da Educação, em junho do corrente ano, essa foi uma das nossas prioridades. Pelo projeto de lei aprovado pela Assembleia Legislativa, o repasse do novo recurso levará em conta indicadores como alfabetização dos alunos, evolução das redes e taxa de aprovação, além do desempenho no Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo – Saresp.

Na verdade, a educação paulista e a Assembleia do Estado já vinham debatendo a adoção do mecanismo há mais tempo. Tramitava no legislativo estadual um projeto de lei de autoria do deputado Daniel José (Novo), cujo teor foi incorporado à proposta encaminhada pelo governador Rodrigo Garcia. O projeto transformado em lei teve como relator o próprio deputado.

Praticamente consensual entre gestores e educadores como importante medida para elevação da qualidade da educação, a nova regra para o repasse incidirá positivamente na participação dos municípios no exame do Saresp, que não é obrigatório. Em 2021, por exemplo, participaram da prova cerca de 200 dos 645 municípios paulistas. O município que não participar ou com taxa de presença dos alunos inferior a 80% receberá a menor nota e, por consequência, menos recursos.

Naturalmente, os prefeitos vão querer trazer mais verbas para seus municípios, razão pela qual tenderão a olhar com mais atenção para sua rede e a ser mais criteriosos na escolha de seus secretários de Educação, levando a uma maior profissionalização e melhoria na qualidade dos gestores locais. 

A tendência é de se instalar uma competição positiva entre os municípios, da qual os maiores beneficiários serão alunos. Competição e colaboração não são excludentes, como demonstra Nogueira em seu livro. No Ceará, por exemplo, escolas melhores ranqueadas adotavam uma escola de baixo desempenho e o mesmo acontecia entre municípios.

Como já foi dito e repetido, na Educação não há uma bala de prata. Ao aprovarmos em São Paulo o ICMS da Educação não temos ilusão de que a medida será a solução milagrosa. Só lograremos êxito se ela for entendida e combinada com um conjunto de programas, sincronizados com as reformas de terceira geração. A saber: autonomia coordenada, articulação da formulação com a implementação, ensino integral, “combinação de planejamento estratégico e coordenação das secretarias estaduais com um modelo de escolas fortes institucionalmente”, como preconiza Olavo Nogueira.

Em São Paulo, o ICMS educacional se somará a programas como Dinheiro Direto nas Escolas, Ensino Integral, Novo Ensino Médio, Centro de Inovação da Educação Básica Paulista, entre outros. As mudanças educacionais bem-sucedidas não acontecem com a velocidade de um raio, ou sob forma de uma revolução rupturista. Ao contrário, acontecem de forma incremental, pois requerem tempo de maturação e o exercício do aprendizado para corrigir ou aperfeiçoar as próprias propostas e sua implementação.

Não será diferente com o ICMS da Educação. Já na lei foram introduzidos mecanismos para evitar distorções. Mas será na prática que o novo mecanismo poderá ser aperfeiçoado – com ganhos para todos.

Educação não pode ser palco de disputa ideológica

Já perdemos muito tempo com a inoperância do MEC, não precisamos de novos e falsos fantasmas

Por Hubert Alquéres

Mal iniciou seus trabalhos, o grupo técnico da área educacional da equipe de transição já é alvo do fogo amigo e da briga entre correntes políticas por maior espaço no futuro governo. A gritaria vem principalmente de corporações sindicais e de movimentos sociais que se sentiram, no primeiro momento, excluídos.

Para estes, e seus porta vozes, a transição de Lula estaria derivando para a “direita empresarial”, uma vez que deu espaço para especialistas e técnicos ligados a instituições do terceiro setor que seriam financiadas por três grandes frentes – Itaú/Unibanco, Natura e o empresário Jorge Lemann. Estas instituições teriam capturado o Grupo de Trabalho da Educação, enquanto o setor público teria ficado “subrepresentado”.

Há nas críticas uma profunda injustiça. A começar quanto à composição do Grupo de Trabalho da Educação. Nomes como José Henrique Paim, Neca Setúbal, Priscila Cruz ou Alexandre Schneider nada têm de “direita”. Se é que a divisão esquerda-direita faz algum sentido na educação, tão afetada nos últimos quatro anos por um viés ideológico e responsável pelo Ministério da Educação não ter cumprido seu papel de articulador de políticas públicas. 

Essa ausência do MEC levou entidades do terceiro setor, como o Todos Pela Educação, a assumir protagonismo em momentos cruciais, como na articulação para a aprovação do novo Fundeb no Congresso Nacional.

A presença de institutos e fundações sem fins lucrativos na transição do governo Lula é o reconhecimento do papel de liderança que desempenharam quando o MEC se omitiu.

Qualquer transição que se preze não pode abrir mão da interlocução com o pessoal dos institutos Península, Ayrton Senna, Natura, Singularidades, Sonho Grande, as fundações Lemann, Telefônica, Maria Cecília Vidigal, o Parceiros da Educação, o Itaú Social, o Profissão Docente e tantos outros. Também seria espantoso desprezar a qualidade da contribuição que pode ser dada pelos quadros da Fundação Getúlio Vargas ou Insper. 

Claro que será necessário ponderar e refletir sobre as propostas e contribuições destas instituições. Até porque, quando elas substituem o Estado na ação de formular e liderar políticas educacionais, vive-se uma situação de anomalia. Espera-se que o MEC retome em janeiro seu papel de articulador e liderança. Daí o protagonismo do terceiro setor deve retornar para as mãos do ministério.

Preconceitos em relação a grupos empresariais com sensibilidade social e comprometidos com uma educação promotora de equidade é um desserviço ao país. Sobretudo ao futuro de nossas crianças e jovens.

Se há algo de animador para a educação nesse período de transição no qual o velho governo já não governa, mas o novo governo ainda não nasceu, é a nítida compreensão de quais serão as prioridades quando de fato governar o país. A primeira reunião do Grupo de Trabalho elencou os seguintes pontos: política nacional de recomposição da aprendizagem no pós pandemia; alfabetização na idade certa; o papel das universidades na formação inicial dos professores; aperfeiçoamento do Novo Ensino Médio; ampliação da educação profissional e do ensino integral; o Sistema Nacional da Educação.

Essa é a real agenda da educação, despida de qualquer viés ideológico. A sinalização não é de que seu barco guinou para a direita, mas de que aponta para uma agenda consequente. Tudo isso, claro, dependerá da reorganização do orçamento, duramente afetado por cortes sucessivos nos últimos quatro anos.  Sobretudo, da escolha de um nome para o Ministério com conhecimento da área, identificado com a correta agenda educacional e com capacidade de liderança para respeitar o pacto federativo e restabelecer o sistema de colaboração entre união, estado e municípios.

A educação viveu, nos últimos quatro anos, o pesadelo de ser palco de disputa ideológica, por meio da imposição de uma agenda estranha ao processo de aprendizagem. Não se pode subestimar o risco de reincidir no erro, agora com sinal trocado. Por ser um governo eleito por uma ampla coalizão, a disputa por espaço entre correntes heterogêneas é, até certo ponto, natural e legítima. Mas quando exacerbada para esconder interesses subalternos contrariados, pode provocar enormes danos.

Por trás do queixume de que o barco da educação derivou para a direita pode estar o velho ranço do corporativismo, que na educação operou, em muitos momentos, como uma força conservadora, renitente a mudanças. E o assembleísmo, cacoete tão ao gosto de parte da esquerda, pode provocar um efeito paralisante.

É indispensável que o grupo de trabalho seja capaz de fornecer um diagnóstico preciso da educação, o que não é possível em uma miríade de entidades, só para aplacar os ciúmes das corporações.

Já perdemos muito tempo com o MEC combatendo moinhos de ventos. Não podemos perder tempo e energia no combate a novos e falsos fantasmas.

O centro terá de se reinventar 

Há espaço na sociedade para a moderação e a conciliação

Por Hubert Alquéres

Com o país praticamente dividido ao meio, conforme ficou evidenciado na vitória apertada de Lula, surgem fortes indagações se ainda há espaço para uma força pautada na moderação, situada entre a extrema-direita e a esquerda. Se for levado em consideração o desempenho das forças de centro no primeiro turno, o receio é enorme, em função de sua desidratação no Parlamento e do desempenho pífio, em termos de voto, de seus presidenciáveis.

O grau de ceticismo, contudo, deve ser contrabalançado por algumas vitórias obtidas no segundo turno, – caso das eleições de Eduardo Leite no Rio Grande do Sul e de Raquel Lyra em Pernambuco – e em particular pela projeção de Simone Tebet como uma liderança nacional emergente. Simone já tinha saído da primeira etapa maior do que quando entrou na disputa presidencial. E voltou a marcar posição ao se jogar de corpo e alma na campanha de Lula, sem perder sua identidade.

O balanço global, claro, não autoriza leituras otimistas, há muitos obstáculos no caminho para o centro se reorganizar. Mas as pedras se movimentam e ainda que em estado embrionário os partidos que se uniram na candidatura de Simone Tebet – MDB, PSDB e Cidadania – iniciaram negociações para a constituição de uma federação partidária, encorpada ainda pelo Podemos. Essa posição é esposada pelos presidentes dos quatro partidos, mas também por Eduardo Leite, que vai mais além. 

O governador do Rio Grande do Sul defende a fusão, com as quatro legendas dando origem a um novo partido, a exemplo do que aconteceu com a fusão do DEM e do PSL, da qual surgiu o União Brasil. Há nesse movimento muito instinto de sobrevivência. Isolados, os partidos de centro terão peso pequeno no jogo parlamentar, a começar na composição da mesa na Câmara e nas comissões. O MDB, que elegeu 42 deputados, ainda será levado em consideração, mas os outros três partidos serão residuais. 

Para além do pragmatismo, há razões políticas para a superação do processo centrífugo e autofágico vivido pelo centro nos últimos quatro anos. Especialmente pelo PSDB, que hoje se encontra sem condições de liderar o processo. A crise da chamada terceira via deveu-se ao fato de, em muitos momentos, ter se desvirtuado. Voltar a se colocar no campo claramente democrático é pré-condição para sua reorganização.

Mas o centro terá de se reinventar enfrentando uma nova dúvida shakespeariana: ser oposição ou apoiar – e até participar – do governo Lula? Conseguirão os quatro partidos ter uma posição unitária em relação a essa questão? 

A resposta a qual dos dois caminhos seguir só será possível quando ficar mais claro os rumos e a composição do governo Lula, sobretudo qual será sua política econômica. Historicamente, essa sempre foi uma das grandes divergências entre os partidos do centro, com sua visão mais liberal da economia, e a esquerda, com sua concepção mais intervencionista.

De qualquer maneira, há riscos nas duas alternativas. Caso opte por ser oposição, o centro pode se transformar em linha auxiliar do bolsonarismo, que fará uma oposição aguerrida a Lula. Não se pode subestimar o fato de parte das bancadas eleitas dos quatro partidos terem apoiado Jair Bolsonaro no segundo turno. Ou seja, há cavalos de Tróia infiltrados nessas legendas.

Mas também há risco de ser engolfado e perder sua identidade, na hipótese de participação no governo Lula. A própria Simone Tebet não está isenta de tal risco, caso deixe de ter luz própria ao ingressar no governo Lula. Sem um ministério que lhe dê visibilidade e se não conseguir manter sua identidade, pode jogar ao mar o capital político que acumulou.

Quanto mais o governo Lula se direcionar ao centro, como as primeiras sinalizações indicam, mas tênue será a linha divisória com os partidos da terceira via. Além do mais, seria esquizofrênico fazer oposição a um governo no qual Simone tenha papel de destaque. Talvez ela própria sonhe com a possibilidade de ser a candidata em 2026, com o apoio de forças governistas. A conferir se o Partido dos Trabalhadores teria a generosidade de permitir tal hipótese.

Como 2026 é puro exercício de futurologia, o centro democrático deveria concentrar seus esforços na sua reinvenção, adotando uma postura de independência ao governo, como sugeriu o cientista político José Álvaro Moisés.  

Apoiar o governo em questões concretas não representará submissão e o centro não pode abdicar do espaço existente na sociedade para a moderação e a conciliação, valores que fizeram o Brasil avançar em muitos momentos de sua história.

Os dois discursos de Lula 2

 “O poder é como o violino, toma-se com a esquerda e toca-se com a direita”

Por Hubert Alquéres

Em espaço de pouco mais de uma hora Lula fez dois discursos distintos. Tanto em relação ao público alvo como na mensagem. O primeiro, lido em um hotel próximo à avenida Paulista e com a presença da imprensa mundial, foi pronunciado para a nação e a comunidade internacional. Difícil encontrar alguma palavra fora do lugar nessa peça, provavelmente escrita a várias mãos. Ali estava o Lula pacificador, pregando uma verdadeira concertação nacional, sintetizada na sua frase “não existem dois Brasis”, que foi estampada na primeira página dos jornais do dia seguinte. E também na promessa de governar para os 215 milhões de brasileiros.

Essas palavras guardaram coerência com a afirmação, feita às vésperas do segundo turno, de realizar um governo além do PT. Na mesma linha, pregou a paz e a união e reconheceu a Constituição como o grande elemento que rege nossa existência coletiva. Suas palavras soaram como música no mundo político, na mídia e em vastos setores da sociedade civil cansados do clima de beligerância dos últimos quatro anos.

Uma hora em meia depois, estava em cima de um palanque em uma Avenida Paulista lotada por um público de esquerda, a esmagadora maioria militantes do Partido dos Trabalhadores. Parecia outro Lula. Em vez do pacificador, quem discursava era o líder partidário, pregando, de forma subjacente o “nós contra eles”, jactando-se de ter derrotado os “fascistas”, dando ênfase a uma agenda identitária e de esquerda.

É comum ser generoso com o vitorioso e poucos registraram a contradição entre os dois discursos. Uma exceção foi o cientista político Marco Aurélio Nogueira, da Unesp: Foi um discurso de alto nível, de Estado. Horas depois, o Lula que surgiu na Avenida Paulista foi o líder partidário, inteiramente entregue à corrente magnética que se espalhava perante o palanque. O orador vibrante, quase demagógico, disposto a religar os fios da história que teriam sido rompidos pelos “golpistas” que “impicharam” Dilma Rousseff, incendiou a avenida e deixou algumas interrogações soltas no ar. Ali, quase ao final da noite, Lula foi mais “ameaçador” do que “pacificador”.

Uma explicação para a dicotomia discursiva está na complexidade e heterogeneidade da amplíssima frente democrática, responsável pela sua vitória no segundo turno. A decantada ameaça à democracia, expressa na candidatura adversária, levou a estar no mesmo palanque Guilherme Boulos e João Amoedo, além de Simone Tebet e os economistas do Plano Real.  

É uma incógnita saber como essa heterogeneidade se materializará na composição do governo Lula e, sobretudo, nos seus rumos. Devemos ter um governo em disputa, no qual ainda não está claro qual tendência seguirá. Se um governo verdadeiramente de união nacional ou um PT puro-sangue enxertado por partidos-satélites, como aconteceu no passado.

Lula é um animal político e sabe sentir a direção dos ventos. A realidade objetiva desnuda inúmeras dificuldades que estão logo ali na esquina. Tem razão o diretor-executivo da consultoria de risco Eurásia, Christopher Garman, ao antever que o novo governo terá uma lua de mel curta e taxa de aprovação mais baixa. Ele alinhava dificuldades praticamente incontornáveis para o sucesso de um governo de reconstrução nacional.

Mesmo assim o realismo político impõe a necessidade da realização de um governo de centro. Diferentemente de 2002, quando recebeu das mãos de Fernando Henrique Cardoso um país organizado e pronto para o crescimento, Lula herdará de Jair Bolsonaro uma nação a ser reconstruída em diversos campos. É necessário restaurar a educação, a saúde, a cultura, os órgãos fiscalizadores, a relação com os outros poderes e com o mundo. 

O horizonte não será nada róseo em 2023. A melhoria do ambiente econômico pode não ser sustentável se uma bomba fiscal explodir. Ela impactará nos juros, na inflação, no desempenho da economia e no desemprego. Para evitar a sua explosão torna-se premente o futuro governo definir qual será sua âncora fiscal.

E como conciliar a responsabilidade fiscal com a demanda social reprimida que Lula prometeu a atender? No curtíssimo prazo terá de encontrar recursos para garantir o auxílio de R$ 600, a Farmácia Popular, a merenda escolar e reajustar a tabela do SUS. E ainda isentar imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil, conforme prometeu. A base social que compõe seu braço esquerdo irá pressionar para o atendimento de sua demanda, mas essa conta fecha?

Agregue-se ainda as dificuldades políticas. O país saiu das urnas praticamente dividido ao meio, com parte significativa dos brasileiros descrente das instituições. Ao mesmo tempo, o Congresso eleito tem um perfil de centro-direita. Esse campo político saiu das urnas ocupando importantes casamatas para uma guerra de posições que pode se estender até 2026. Entre elas, os governos de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Ou seja, a priori, surge uma oposição de direita robusta, com capilaridade na sociedade e no mundo da política. 

O realismo político impõe a necessidade de muita negociação, moderação e da prevalência do espírito do discurso pacificador em vez do discurso ameaçador. 

A alternativa a um governo de centro, ou de união nacional, é o governo puro-sangue para atender ao radicalismo das bases. Se for por aí, o terceiro turno estará instalado nos primeiros dias após a posse. Em outras palavras, como político experiente, o novo presidente deveria levar em consideração as sábias palavras de Esperidião Amin: “o poder é como o violino, toma-se com a esquerda e toca-se com a direita”. Ou Lula não agiu assim em 2002, quando escolheu Palocci e Meirelles e deu continuidade à política econômica de Fernando Henrique?

A educação ficou de fora

Nem Lula, nem Bolsonaro incluíram a formação dos nossos jovens no debate presidencial 

Por Hubert Alquéres

Em condições normais, a educação deveria ser um dos temas prioritários na campanha de dois finalistas em uma disputa presidencial. Já há larga evidência científica sobre seu papel estratégico para a promoção da equidade e para o alcance do crescimento sustentado. Nenhum país do mundo conquistou desenvolvimento e prosperidade sem priorizar o ensino básico. Exemplo mais emblemático é a Coreia. País atrasado até o final dos anos 50, se transformou em uma potência mundial, exportadora de bens de alta densidade tecnológica.

Um dos motivos do crescimento raquítico da economia brasileira – em média 1% ao ano nas últimas quatro décadas –  é a sua baixa produtividade, em função da pouca escolaridade de nossa mão de obra. Seria natural, portanto, que a educação estivesse no centro da disputa presidencial. Ainda mais quando se leva em consideração os efeitos da pandemia na aprendizagem dos alunos, como ficou evidenciado no Ideb 2021, divulgado no mês passado. Houve estagnação, perda de proficiência e praticamente dobrou o número de crianças com sete anos de idade que não sabem ler ou escrever.

Nem mesmo esse quadro dantesco sensibilizou Lula e Jair Bolsonaro para colocarem o ensino básico no centro do debate. Estamos na última semana do segundo turno, mas até agora nada disseram sobre questões fundamentais para a elevação da qualidade do ensino. Em vez disso, oferecem, no máximo, propagandas autorreferentes.

O que os dois pensam sobre a formação inicial dos professores, hoje realizada em quase 80% das matrículas por meio do ensino a distância de baixa qualidade? Como pretendem dar ritmo às reformas educacionais de terceira geração dos quais o novo ensino médio, o ensino integral, a alfabetização na idade certa são elementos estratégicos? Como pretendem viabilizar as 20 metas do Plano Nacional de Educação?

Tampouco há indícios de como vão enfrentar a necessidade de fortes investimentos para alcançar a meta de um ensino básico público de qualidade e inclusivo. Em termos de proporção do PIB, o Brasil investe quase o mesmo dos países da OCDE, mas quando se considera a relação por aluno do ensino básico, investimos menos do que a metade dos países desenvolvidos. Esse é o debate que interessa, que diz de perto ao futuro de nossos jovens.

Sobre tais temas há uma ausência absoluta na disputa presidencial. Vejamos o debate da TV Bandeirantes com Lula e Bolsonaro do penúltimo domingo. A educação básica só não passou em brancas nuvens porque o jornalista Taiguara Ribeiro, da Folha de S. Paulo indagou aos dois contendores quais suas propostas para mitigar os efeitos da pandemia, quando as escolas ficaram fechadas por mais de 200 dias, na aprendizagem dos alunos.

Cada um dedicou apenas um minuto e meio ao tema. Lula apelou para generalidades: “vou convocar uma reunião com governadores e vamos fazer um verdadeiro mutirão para resolver isso”. E Bolsonaro passou recibo pela absurda omissão do governo, ao apresentar como única ação a criação pelo MEC de um aplicativo de ensino a distância. No mais, quando a educação apareceu, foi sobre o ensino superior.

Talvez a explicação para o fato de a educação passar ao largo da disputa presidencial esteja no fato de que os dois não tenham muito a dizer em relação ao ensino básico. Isso é visível no caso de Lula. Quando se refere ao tempo em que presidiu o país destacam-se a instituição de cotas, a expansão da rede de universidades públicas e programas como o Prouni. Sim, tais medidas foram importantes para possibilitar o acesso dos alunos mais pobres ao ensino superior. 

Mas talvez esteja aí um equívoco dos governos do Partido dos Trabalhadores, a prioridade dada ao ensino superior. Avanços ocorridos nesse período no ensino básico se deram mais pelo protagonismo dos estados do que pela ação do MEC. Exemplos: alfabetização na idade certa no Ceará e ensino médio integral em Pernambuco. 

Não se nega o mérito do governo Lula de ter dado continuidade às políticas adotadas na gestão de Paulo Renato Sousa, com a transformação do Fundef em Fundeb. Mas o MEC no período Lula-Dilma não foi o indutor da nova onda de reformas educacionais. Esse protagonismo só foi retomado no governo Temer, com o Novo Ensino Médio e a aprovação da Base Nacional Comum Curricular.

Já Bolsonaro não diz nada porque priorizou uma agenda ideológica estranha às reais prioridades educacionais, fez da educação um campo da sua “guerra cultural”, anatemizou professores, enfraqueceu órgãos estratégicos como o Inep e o próprio ministério da Educação, que perdeu protagonismo. Promoveu ainda uma verdadeira dança das cadeiras no MEC, que está no seu quinto ministro em menos de quatro anos.

Pode-se arguir, e com razão, que não apenas a educação tem passado ao largo do debate. O mesmo acontece com o meio-ambiente, a economia e assim em diante. O rebaixamento da disputa presidencial a questões absolutamente descoladas dos reais interesses da nação é uma consequência desses tempos de polarização, de substituição do bom debate pelo xingatório.

Se a disputa presidencial se desse em outro patamar e de forma civilizada poderia dar uma enorme contribuição para a construção de um pacto nacional pela Educação. Ela não é de esquerda, não é de direita. É a via para a construção de um futuro melhor para nossos jovens. Lula e Bolsonaro desperdiçaram essa oportunidade.

Ensino integral como política de Estado

Do modelo criado por Darcy Ribeiro aos tempos de hoje

Por Hubert Alquéres

Darcy Ribeiro, cujo centenário comemora-se no próximo dia 26, foi um visionário na educação. Esteve à frente do seu tempo, como o primeiro gestor brasileiro a transformar o ensino integral em política pública. Até então tínhamos apenas iniciativas isoladas, como a Escola Parque de Salvador, criada por Anísio Teixeira. Ao implantar os Centros Integrados de Educação Pública-CIEPs, no Rio de Janeiro, considerou que o ensino integral era a ferramenta para enfrentar a desigualdade e promover a equidade.

Partiu do pressuposto de que toda a criança tem potencial para se tornar um trabalhador hábil e um cidadão pleno. Era preciso, no entanto, compensar as condições de pobreza em que vivem e a baixa escolaridade de seus pais. Isso seria possível por meio de uma escola ampla, na qual o aluno passasse o dia estudando, e fosse oferecida uma educação holística, de forte conteúdo e diversificada nas suas atividades. Por esse caminho, tornava-se viável unir, em equilíbrio, a formação do ser individual e coletivo, fazendo sua conexão com a realidade e o levando a compreendê-la. Dessa forma o ensino das crianças pobres iria se aproximar daquele das crianças das camadas mais ricas.

Na sua estratégia três elementos eram fundamentais para o sucesso: o envolvimento da comunidade, a formação inicial e continuada dos professores e alimentação de valor nutritivo para os alunos. O Programa Especial de Educação, coordenado por Darcy e responsável pela criação de mais de 400 CIEPs nos dois governos de Leonel Brizola no Rio de Janeiro (1982-1986 e 1990-1994), investiu fortemente na formação de professores e gestores.

Iniciado em 1983, os CIEPS foram apelidados pejorativamente de “Brizolões” e, em seguida, vítimas de um mal que assola a educação desde os tempos imemoriais: a descontinuidade de políticas públicas quando um novo governo assume. Isso aconteceu na sucessão de 1986 e na de 1994.

Seus críticos diziam que era um programa caro, sobretudo o projeto arquitetônico das escolas. Darcy Ribeiro respondia: “cara é a pobreza, é a miséria”. Ao fim, seu programa educacional foi substituído por uma concepção segundo a qual o pobre só tem direito a uma educação pobre.

O pioneirismo de Darcy ressurgiria com força na primeira década deste século quando, no ano de 2008, em Pernambuco, o governo de Eduardo Campos investiu pesado no ensino integral. Em menos de uma década o Estado, cuja educação ficava bem atrás no sistema de avaliação, deu um enorme salto no ranking do Ideb.

Na segunda década deste século espraiou-se por diversos estados, especialmente em Minas Gerais e São Paulo. Aqui, as escolas de ensino integral saltaram de 364 (6% da rede estadual de ensino) em 2019, para 2.060 (40% do total da rede) em 2022. Em fevereiro do próximo ano, com a autorização do governador Rodrigo Garcia, as aulas começarão com mais 200 escolas neste modelo.

O mundo, e com ele a educação, mudou muito, desde a época do pioneirismo de Darcy Ribeiro. A escola de ensino integral de hoje não é a mesma de sua época. Até porque a sala de aula já não é a mesma daquelas de cadeiras enfileiradas e de aulas expositivas. Hoje elas se dão muito por projetos, e o papel do professor é mais o de um curador do conhecimento do que um simples transmissor de fatos e números. Ao mesmo tempo, o aluno é também protagonista de sua própria aprendizagem e dele se exige que desenvolva habilidades sócio-emocionais para obter sucesso em um mundo cada vez mais complexo.

Evidente, para responder satisfatoriamente às exigências das novas demandas educacionais, a escola tem de ser de tempo integral. E o modelo tem de oferecer aos jovens uma educação mais próxima de sua realidade. Para isso o currículo ficou flexível, adaptado às reais necessidades do aluno e voltado para sua formação profissional e de cidadão.

O Novo Ensino Médio possibilita aos jovens, além dos conteúdos comuns obrigatórios, escolher diferentes itinerários formativos mais adequados à sua vocação, assim como a construção de seu projeto de vida. Além disso, investe nas habilidades sócio-emocionais que farão a diferença para a construção de seu futuro na sociedade.

O ensino integral vai além do que ampliar a jornada diária de aulas de cinco horas para sete ou nove horas. Implica em acolhimento dos alunos, ações de tutoria, dar protagonismo aos grêmios e clubes estudantis, conferir autonomia financeira para as escolas, desenvolver projetos de convivências e de conscientização, cuidar da saúde psicológica dos alunos, e adotar programas sociais, como o que disponibiliza absorventes para as jovens de famílias carentes.

Um dos grandes méritos dos CIEPs foi o de deixar os alunos menos expostos à sedução do crime organizado. As escolas de ensino integral de hoje também contribuem para a diminuição da violência.

A cada nova escola neste modelo, o espírito de Darcy revive e seu legado se materializa.

Para o futuro de nossas crianças e jovens essa educação deve se consolidar em política de Estado. Não pode ser abandonado por injunções políticas, como, infelizmente, aconteceu com a grande obra de Darcy Ribeiro.

As utopias de Darcy Ribeiro

 “Fracassei em tudo na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras e não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são as minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”.

Darcy Ribeiro foi um dos grandes brasileiros nascido no icônico ano de 1922, em 26 de outubro. Sua frase, em tom de desabafo e de sentimento de perda, não expressa, contudo, seu enorme legado ao país. Nem as grandes vitórias de sua vida. Pensar e entender o Brasil a partir de uma leitura de como se mesclaram raças e culturas foi sua grande utopia. Mas não a única.

Etnólogo, antropólogo, educador, político e escritor de vasta produção intelectual, se dedicou, em particular, à defesa da causa indígena e à educação. Seus ”fazimentos”, para utilizar uma expressão de sua lavra, vão da fundação do Museu do Índio até a criação da Universidade Nacional de Brasília, passando, ainda, pela implementação em larga escala do ensino integral no Rio de Janeiro, no governo de Leonel Brizola.

Darcy foi quase tudo na vida pública. Reitor da UNB, ministro da Educação, chefe da Casa Civil de João Goulart e senador da República. A Lei de Diretrizes e Bases de 1996, da qual foi o relator no Senado, leva seu nome. Difícil definir qual dos seus “fazimentos” foi o mais relevante, mas, certamente, sua participação, ao lado do Marechal Rondon e dos irmãos Villas Boas, no projeto de criação do Parque Nacional do Xingu foi uma de suas maiores contribuições ao Brasil.

As linhas de sua vida cruzaram com as de outras duas grandes personalidades de nossa história: o marechal Cândido Rondon e o educador Anísio Teixeira, seus grandes mestres. O encontro com o já octogenário marechal se dá em 1947, quando ingressa no Serviço de Proteção ao Índio, por recomendação do antropólogo alemão e professor da Faculdade de Sociologia e Política de São Paulo, Herbert Baldus.

Há um episódio emblemático da relação entre eles. Já bastante enfraquecido em função da idade, Rondon não pode ir ao funeral do seu grande amigo Catende, cacique dos índios Bororos. Para representá-lo, envia seu pupilo, com uma carta na qual o marechal diz: “Darcy é meu olho, minha boca”. E quando Rondon morre quem discursa em seu funeral também é o seu pupilo predileto.

Anísio Teixeira entra em sua vida em 1952. “Foi a mente mais brilhante que conheci”, diria Darcy Ribeiro anos depois, acrescentando: ”Anísio me ensinou a pensar, a duvidar”. A partir daí a Educação passa a ser sua outra grande utopia. Os dois fundam a UNB e vão travar o bom combate em defesa da escola pública, como signatários do manifesto “Educadores – Mais uma vez convocados”, de 1959. Especificamente, Darcy polemiza com o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda, sobre o papel da escola pública.

Para implementar no Rio de Janeiro os Centros Integrados de Educação Pública – CIEPs, Darcy foi beber na experiência exitosa da Escola Parque de Salvador, criada por Anísio Teixeira em 1950. Assim, Anísio definia o papel da escola integral: “desejamos que a escola eduque, forme hábitos, forme atitudes, cultive aspirações, prepare realmente a criança para a sua civilização”.

Para entender o Brasil, produz uma extensa e rica obra teórica no campo da antropologia. Inicia pelo estudo do “Processo Civilizatório” e da “América e a Civilização”, títulos de dois de seus livros. De forma inovadora, faz uma tipificação antropológica das nações americanas, classificando-as em três tipos: 1) “Povos novos”, resultado do alto grau de miscigenação entre os europeus, negros africanos e índios. Esses seriam povos diferenciados e únicos, no qual o Brasil se encaixava; 2) ”Povos-testemunhos”, aqueles formados sobre as civilizações já existentes (Peru, México, Bolívia etc); 3) “Povos transplantados”, que se formaram a partir dos europeus. Os Estados Unidos e o Canadá seriam os maiores exemplos.

 Seu livro “O Povo Brasileiro – A formação e o sentido do Brasil” é leitura obrigatória para a compreensão da nossa formação étnica e cultural. Nele, nos descreve como um dos países mais miscigenados do mundo, cujas matrizes são o colonizador, o índio e o escravo africano. Segundo sua teoria, essas matrizes se desconstroem ao longo do tempo e dão lugar a um povo único e ímpar. Ele não é negro, branco ou índio. É a mistura dos três, com uma identidade própria.

É autor ainda de dois ensaios sobre a cultura indígena. Em “Maíra”, narra a história de um índio adotado por um padre e convencido a seguino sacerdócio, entrando em conflito por ter abandonado seu povo e seus valores. Em” Uirá sai a procura de Deus”, narra a saga de um índio Urubu-Kaapor, que decide pôr fim à vida ao ter seu cotidiano devastado pela presença do “homem civilizado”.

Suas utopias estão entre nós. Conforma nossos anseios por um Brasil autônomo, por crianças alfabetizadas, por escolas de boa qualidade, por justiça social e democracia. Afinal, a teimosia nos fez brasileiros, como bem diz a frase de Darcy: “O Brasil surge e se edifica a si mesmo, não em desígnios de nossos colonizadores. Eles só nos queriam como feitoria lucrativa. Contrariando suas expectativas, nos erguemos, imprudentes, inesperadamente, como um novo povo, distinto de quantos haja, deles inclusive, na busca do nosso ser e do nosso destino.”