Nas mãos da França

 

Eleições francesas (Foto: Arquivo Google)

por Hubert Alquéres

Sessenta anos após o Tratado de Roma – embrião da União Européia, com um mercado de 500 milhões de pessoas que uniu rivais históricos e construiu a paz entre os países membros –  joga-se na França o destino do bloco.

Abalada pela vitória do Brexit na Inglaterra, a atual configuração geopolítica do velho continente dificilmente se sustentará de pé na hipótese de uma vitória da ultradireitista Marine Le Pen.

O primeiro turno da eleição francesa será em 23 de abril e entre as bandeiras de Marine está a saída da França do bloco, por meio de um referendo – o Frexit.

Os temores de a França se afogar no arrastão populista que varreu a América e a Europa, se arrefeceram com a derrota na Holanda do candidato da ultradireita Geert Wilders para o conservador e pró Europa Mark Rutte.

Mesmo assim o perigo existe e a França, também se movimenta do centro para a direita.  A alternativa factível à candidata da Frente Nacional é outro outsider, o social-liberal Emmanuel Macron. É o candidato mais alinhado com a União Europeia.

Ex-ministro da Fazenda do governo François Hollande, Macron roubou a cena de um segundo turno que se anunciava entre a ultradireitista Marine e o direita tradicional de François Fillon, candidato dos Republicanos.

As pesquisas desta terça-feira, dia 28, apontam empate técnico de Le Pen e Macron no primeiro turno e folgada vantagem do social-liberal no segundo. Mas face o número de indecisos, a prudência é a melhor conselheira na análise das tendências.

A polarização Le Pen-Macron é a maior evidência da crise dos partidos tradicionais.

Desde o advento da Quinta República, quando os franceses substituíram o parlamentarismo pelo semipresidencialismo, a disputa ficou sempre entre socialistas e republicanos, que se alternaram no poder.

A exceção foi em 2002. Na época, o ultrarradical Jean Marie Le Pen – pai de Marine – foi massacrado pelo republicano Jacques Chirac, no segundo turno.

A implosão do bipartidarismo francês tem como pano de fundo fatores idênticos aos que impulsionaram a vitória de Donald Trump e o crescimento da ultradireita em quase toda a Europa. Os republicanos acompanharam esse movimento. Seu candidato, François Fillon, girou mais ainda para a direita, na tentativa, inútil, de atrair o eleitorado que se deslocou para Marine Le Pen.

No outro extremo, a esquerda francesa, como toda a esquerda europeia, vive sua diáspora.

A crise da socialdemocracia vem de longe. Decorre, basicamente, de ela não ter encontrado fórmulas de financiamento do Estado de Bem-Estar, sendo obrigada a, como governo, a efetivar cortes sociais.

Isso explica, em grande medida, porque o presidente Hollande desistiu de disputar a reeleição e porque seu candidato às prévias do Partido Socialista foi fragorosamente derrotado.

Como na Alemanha – onde o candidato do Partido Social Democrata, Martin Schul anunciou que vai rever os cortes sociais da agenda 2010 do ex-chanceler Gerhard Schröder (SPD) – o Partido Socialista faz uma inflexão à esquerda. Seu candidato, Benoit Hamon, adotou um programa mais voltado para demarcar terreno, com vistas a constituir uma esquerda alternativa.

A esquerda está balcanizada.

Hamon sofre a concorrência da candidatura de Jean-Luc Mélenchon, apoiada pelo Parti de Gauche e pelo Partido Comunista Francês e não é torpedeado no interior do seu partido.

A conta-gotas cresce a adesão de políticos socialistas à campanha de Emanuel Macron. O Partido Socialista se vê diante do dilema de ser oposição ao futuro governo ou seguir a cultura da esquerda europeia de ser governo, ainda que pela terceira via do social-liberalismo. Ao final, pode ser o grande derrotado das eleições, como o foi o Partido Trabalhista da Holanda, que perdeu cadeiras no Parlamento para a direita e para a Esquerda Verde.

No universo oposto Marine Le Pen assume a postura de uma “ultradireita light”. Reciclou seu discurso para se diferenciar de ativistas antissemitas, homofóbicos ou nostálgicos da colaboração francesa com a Alemanha nazista. E também de seu pai, até hoje marcado pela frase “a morte de judeus em câmaras de gás na Segunda Guerra Mundial foi apenas um detalhe”.

Mas é maquiagem pura. O racismo, a anti-imigração, o protecionismo e as xenofobias estão presentes em suas propostas.

A radicalização dos extremos beneficia Macron. Os olhos da Europa e do mundo voltam-se para ele, na esperança de que as trevas não se imponham no berço do iluminismo e de valores como a liberdade, a igualdade, a fraternidade.

 

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Este artigo foi publicado originalmente no site do jornal O Globo, no Blog do Noblat:

http://noblat.oglobo.globo.com/artigos/noticia/2017/03/nas-maos-da-franca.html

 

Ruas apáticas?

Por Hubert Alquéres (*)

A baixa adesão às manifestações de domingo alimenta interpretações segundo as quais os brasileiros voltaram a mergulhar na apatia, um ano após ter colorido as ruas do país com milhões e milhões de pessoas vestidas de verde e amarelo.

Nessa ótica, a desmobilização da sociedade estaria aplainando o terreno para que a Lava Jato tenha desfecho melancólico, semelhante ao da Operação Mãos Limpas da Itália, onde, ao fim e ao cabo, o sistema político se anistiou e tudo continuou na mesma.

Possivelmente, o próprio Palácio do Planalto e o Congresso Nacional tenham respirado aliviados e estejam comemorando o relativo deserto das ruas, se é que podemos chamar de deserto manifestações como as de domingo.

A conjunção de forças interessadas na autopreservação dos partidos e políticos envolvidos no maior escândalo da nossa história, se sentirá encorajada para avançar na sua agenda, avaliando que chegou a hora de seguir os preceitos de Maquiavel e fazer o mal de uma vez só.

Lula e o PT, por sua vez, deverão fazer uma leitura cor-de-rosa, na ilusão de que estão sendo absolvidos pelas ruas.

Como diria o filósofo, devagar com o andor pois as aparências são apenas a face enganosa das coisas. Comete tremendo erro de cálculo quem aposta na paralisia da sociedade. Nada autoriza interpretar as últimas manifestações como sintoma da apatia das ruas.

Quem pensa assim não entendeu o fenômeno que se espraiou pelo mundo e chegou ao Brasil em 2013, com suas manifestações multitudinárias. As jornadas do impeachment foram o ápice desse fenômeno, cujas características são a horizontalidade de suas manifestações e de seus coletivos, a diversidade de suas tribos, bandeiras tangíveis e alta interatividade; virtual e presencial.

Esse fenômeno tem seus momentos de pico, quando ocorrem o chamado “enxameamento” (swarmings) com as ruas se transformando em imensa colmeia. Mas há também seus momentos de calmaria, com manifestações atomizadas de suas tribos.

Ele expressa a tendência cada vez mais crescente da ocupação dos espaços urbanos para o exercício da cidadania, seja na política propriamente dita, seja nas suas manifestações culturais ou de lazer, na defesa de espaços públicos ou de respeito à diversidade. Até o boom dos blocos carnavalescos não deixa de ser um enxameamento.

O difícil é saber a partir de que ponto há o crescimento exponencial das manifestações. O certo é que elas não serão multitudinárias todo o tempo. Não se pode, portanto, ter como régua para aferir seu sucesso ou fracasso as jornadas de 2016, quando quatro milhões de brasileiros foram às ruas. Ou compará-las com manifestações verticalizadas, nas quais os manifestantes são arrebanhadas pelo aparato sindical e partidário.

É mais lógico aferir se os atos de domingo estão em sintonia com os sentimentos dos brasileiros, para saber se elas pregaram no deserto.

Por tudo que as pesquisas já revelaram, por tudo que circula nas redes sociais, a conclusão é de que o estado de espírito da sociedade é o mesmo das jornadas de 2015 e 2016. E só não vai para as ruas com a mesma intensidade porque não há motivo concreto para tal.  Por enquanto, há preocupações e desconfianças genéricas que não se materializam em bandeiras facilmente assimiláveis.

No mundo da hiperconectividade, as pessoas participam de forma presencial e de forma virtual. O próprio conceito de rua tem de ser repensado, pois as redes sociais não deixam de ser uma grande avenida. Hoje é assim: as pessoas saem das redes sociais para as ruas e das ruas para as redes sociais.

Talvez esse seja o momento no qual as pessoas estejam exercendo a militância e a cidadania mais de forma virtual do que presencial. Poderá se desdobrar em novo e grande enxameamento?

Depende.  Não sabemos qual será o impacto da divulgação das delações da Odebrecht no humor dos brasileiros e o terremoto que causará no mundo da política. Como os partidos e políticos reagirão?

Isso explica, em parte, a baixa adesão de domingo. Talvez o timing das manifestações não fosse esse e suas bandeiras tenham sido confusas e excludentes. Ou, quem sabe, os coletivos catalizadores do sentimento pró impeachment tenham chegado ao seu limite.

Tudo isso é real. Mas daí concluir que as ruas estão apáticas vai uma distância enorme.

A sociedade está mais viva do que nunca. Quem acreditar que as ruas emudeceram e se sentir de mãos livres para frear o curso dos acontecimentos poderá ser surpreendido e atropelado a qualquer momento. Afinal, o caldeirão continua fervendo, ainda que em fogo brando.

Expediente de ocasião

Lista fechada (Foto: Arquivo Google)

por Hubert Alquéres

Em meio à renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961, o jeitinho brasileiro levou nossas elites a adotar o sistema parlamentarista para contornar o conflito entre os militares, que não queriam a posse do vice João Goulart, e as forças perfiladas no respeito à legalidade e à Constituição.

Parecia uma obra de engenharia política. Evitava a iminência de uma guerra civil, com o risco da fratura das Forças Armadas, e observava a cadeia sucessória em sintonia com os preceitos legais.

Adotada de afogadilho como “solução” para uma questão meramente conjuntural, a instituição do parlamentarismo só empurrou a crise com a barriga.

Ela voltaria com força e, em janeiro de 1963, os brasileiros decidiram-se pelo retorno ao presidencialismo. O desfecho desse episódio, todos nós sabemos; a ruptura democrática de 1964 e 21 anos de ditadura no Brasil.

Lição da história: expedientes de ocasião não são solução, são parte do problema.  Só turbinam as crises.

O exemplo histórico se faz oportuno diante das articulações do mundo político para aprovar, à toque de caixa, uma “reforma política” com dois jabutis rejeitados amplamente no Congresso em outras oportunidades: o voto em lista e o financiamento de campanha.

Jabutis, não porque esses dois temas não possam constar de uma reforma consistente que aproxime o eleitorado de seus representantes e contribua para a oxigenação nacional.  Voto em lista e financiamento público de campanha existem em países de modelo bem mais saudável do que o nosso.

A discussão não é filosófica. Se fosse séria, a reforma arquitetada por parlamentares e políticos contemplaria também a adoção de um sistema de eleição proporcional baseada no voto distrital puro ou misto, e a imposição de cláusula de barreira capaz de debelar o caleidoscópio partidário, hoje composto por 35 legendas.

Abriria, ainda, caminhos para o Brasil marchar para o parlamentarismo – regime, sem dúvida, mais avançado e mais resiliente às crises.

Não são essas as preocupações dos partidos e dos parlamentares.  Estão focados apenas em como vão sobreviver à bomba atômica da lista do procurador-geral da República, Rodrigo Janot. A luz vermelha acendeu no julgamento do senador Valdir Raupp, com a decisão da Segunda Turma do STF de considerar como crime contribuições em Caixa 1 quando o recurso representar propina por vantagens indevidas.

Sobreviver significa se reeleger para continuar usufruindo do foro privilegiado.  Daí a engenhosidade: a carta na manga é o anonimato da lista fechada, onde os investigados da Lava Jato pretendem se esconder dos eleitores para conseguirem ser reeleitos.

O casuísmo do casuísmo. Na lista fechada teriam prioridade parlamentares com mandato. E como foram aferrolhadas as torneiras da contribuição empresarial, querem apelar para o meu, o seu, o nosso dinheiro – para usar palavras de parlamentares que há dois anos eram contrários ao financiamento público.

A lista fechada pressupõe a existência de partidos ideologicamente definidos e com visão programática.

Não é o caso do Brasil, com seus 35 partidos, uma geleia ideológica. Mesmo as principais siglas com um mínimo de definição – o PT e o PSDB – estão distantes de suas origens e se nivelaram por baixo.

É hora de voltar ao exemplo de 1961, quando uma ideia nobre, o parlamentarismo, foi vilipendiada e só ampliou a crise. Nas circunstâncias de hoje, a adoção do voto em lista e do financiamento público vai agravar a crise de representação, tornando abismal o fosso entre os eleitores e seus representantes.

Recentemente o Brasil recebeu uma lição de solidariedade dos nossos irmãos colombianos, na tragédia da Chapecoense. Pois bem, nossos políticos poderiam se espelhar no presidente da Colômbia, Manoel de Lo Santos.

Envolvido em denúncias de que suas duas campanhas receberam recursos ilegais da Odebrecht, De Lo Santos teve a coragem de assumir responsabilidades e pedir desculpas aos colombianos por “esse ato vergonhoso”.

Dá para esperar o mesmo de quem está preocupado somente em salvar a própria pele?

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Este artigo foi publicado originalmente no site do jornal O Globo, no Blog do Noblat:

http://noblat.oglobo.globo.com/artigos/noticia/2017/03/expediente-de-ocasiao.html

 

Anatomia de um desastre

Economia Brasileira (Foto: Arquivo Google)

por Hubert Alquéres

Só agora, com a divulgação da queda do PIB de 2016, temos a verdadeira dimensão da tragédia construída ao longo dos governos Lula-Dilma, que fez a economia brasileira retroceder aos níveis de 2010, com uma queda nunca vista em nossa história. Não deixa de ter razão o jornalista Clovis Rossi ao caracterizar a queda em 10% da renda dos brasileiros e a geração de um exército de treze milhões de desempregados como um crime de lesa pátria.

Atribui-se à ex-presidente Dilma Rousseff a autoria pela maior recessão da história do país. É verdade, mas em parte. As bases de uma catástrofe anunciada foram lançadas nos anos Lula, com sua política de subsídios seletivos, de expansionismo fiscal, de abandono dos fundamentos econômicos, da política dos campeões nacionais, de namoro com a inflação, de intervencionismo e dirigismo estatal.

E também das pedaladas, do represamento de preços, do populismo tarifário, do aparelhamento do Estado e da utilização do BNDES como financiador de um projeto de poder – o chamado Estado-Odebrecht; como apropriadamente o caracterizou outro conhecido articulista, Demétrio Magnoli.

Criador e criatura legaram ao país uma terra arrasada.

Como foi possível chegar a isso?

A resposta está no livro “Anatomia de um desastre”, lançado no final de 2016 e escrito por três grandes jornalistas econômicos: Cláudia Safatle, diretora-adjunta de redação e colunista do Valor Econômico, João Borges, repórter e comentarista de economia da Globonews, e Ribamar Oliveira, repórter e colunista também do Valor. Trata-se de leitura obrigatória para quem quiser entender os descaminhos da economia nos treze anos do lulopetismo e saber como, um por um, foram destruídos os fundamentos da boa economia que, se não tivessem sido descontinuados, teriam proporcionado aos brasileiros o ingresso no grupo dos países com crescimento sustentado e com índices mais palatáveis de desenvolvimento humano.

Vamos a alguns lances do livro.

Na manhã de 19 de fevereiro de 2003 o Copom se reunia pela segunda vez no governo Lula para decidir qual seria a taxa de juros básicos. Um mês antes, a equipe de Henrique Meirelles, então presidente do BC, deu prosseguimento à política de aumento da Selic adotada pelo seu antecessor, Armínio Fraga. Os juros tinham subido em janeiro para 25%, com o respaldo dos três homens fortes do governo – Antonio Palocci, José Dirceu e Luiz Gushiken.

Tudo conspirava para ser uma reunião tranquila. O time estava prestigiado. Mas, de repente, o ambiente ficou turvo. O presidente do BC é chamado para atender um telefonema no seu gabinete. A tensão se justifica. De acordo com o ritual do Copom, ninguém deixa a sala de reunião enquanto se discute a taxa de juros, a não ser para atender um chamado do presidente da República ou do ministro da Fazenda.

Os quinze minutos de espera pareciam uma eternidade. Quando Henrique Meirelles retorna à reunião sua expressão facial era a de um homem tenso. De forma enigmática, dá uma pista sobre o teor do telefonema: “Politicamente vai ser complicado aumentar os juros”.

Não diz quem estava no outro lado da linha, mas era fácil de intuir: Lula.

Com anos de janela, o diretor da área de Liquidações, remanescente da diretoria anterior, propõe uma interrupção para o almoço em conjunto para que fosse costurada uma decisão por unanimidade. Quando a reunião é retomada, o clima ameno tinha voltado. Ao final, o Copom divulgou a decisão de elevar a Selic para 26,5% e de aumentar o compulsório sobre depósitos à vista de 45% para 60%. Esse e outros episódios do embate desenvolvimentistas e ortodoxos (ou neoliberal, como os xingava Guido Mantega) no interior dos governos lulopetistas são dissecados de forma magistral pelos autores de “Anatomia de um Desastre”. A corda sempre rompeu do lado dos “ortodoxos” por uma simples razão: a cabeça de Lula sempre esteve mais para a Carta de Olinda, que preconizava a ruptura com o “modelo neoliberal de FHC”, do que para o “Lulinha, paz e amor” da Carta aos Brasileiros, com sua promessa de respeito aos contratos e aos fundamentos macroeconômicos.

A reunião do Copom de fevereiro de 2003 foi a última grande vitória dos ortodoxos. Como o livro revela, a adesão de Lula a uma política econômica responsável foi apenas um movimento tático, pois a partir de 2006 a economia passou a se subordinar à política, ou melhor, aos objetivos políticos do caudilho, a começar por sua reeleição e posteriormente à eleição de Dilma.

Dramaticamente, o livro narra como o país perdeu, em 2006, oportunidade de ouro de sanear suas contas com a adoção do déficit nominal zero – proposta de Palocci e de Delfim Neto – e de baixar a meta da inflação para 4%, o que aumentaria a credibilidade da política econômica e reforçaria o grau de confiança dos investidores.

Nas páginas do livro desfilam figuras impagáveis, que serão apreciadas pela história, para o bem ou para o mal. Delas, Henrique Meirelles sai como um servidor com muitos serviços prestados à pátria. Guido Mantega como um bufão, um Polyana que só meteu os pés pelas mãos. E Dilma e Lula – com maior peso para o caudilho – como os grandes responsáveis pelo desastre anunciado.

Há também figuras menores, desconhecidas do grande público, mas com um poder imenso no reino do lulopetismo. Uma delas, Arno Augustin, “um trotskista no comando do Tesouro”. Era a alma gêmea de Dilma, iguaizinhos no estilo voluntarista, centralizador e autoritário. Era pela boca de Arno que Dilma enquadrava os demais membros da equipe econômica.

Quem ler o livro deve ficar atento a uma ilustração bem no miolo. É uma reprodução da entrevista de 2009 do então ministro da Fazenda Guido Mantega às páginas amarelas da Veja, na qual faz a seguinte premonição: ”Ninguém mais quer saber de déficit público e inflação. Se no futuro for eleito um presidente irresponsável ele terá de se submeter às regras do jogo ou será impichado.”.

E não é que Mantega acertou uma.

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Este artigo foi publicado originalmente no site do jornal O Globo, no Blog do Noblat:

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A mãe de todas as batalhas

Queda de braço (Foto: Arquivo Google)

por Hubert Alquéres

Costuma-se chamar de mãe de todas as batalhas aquela determinante para o desfecho da guerra. Na batalha de Waterloo, os deuses da vitória sorriram para o Duque de Wellington, enquanto Napoleão amargou o fel da derrota. O mesmo aconteceu com os alemães em Verdun, na Primeira Guerra Mundial, e nas ruas de Stalingrado se deu a inflexão da Segunda, com a ruína de Hitler.

Em certo sentido, a reforma da Previdência está para o presidente Michel Temer assim como Waterloo esteve para Wellington, Verdun para os franceses e Stalingrado para os aliados.

Se vencer a batalha, consolidará os sinais positivos da recuperação da economia e estabelecerá a ponte para um Brasil reorganizado, em condições de alcançar o crescimento sustentado.

Nessa hipótese, entraria para a história como o presidente que completou as reformas estruturantes e modernizadoras. A aprovação lhe dará ainda fôlego para enfrentar os bombardeios que estão por vir com a revelação das delações da Odebrecht e a nova lista do procurador-geral da República, Rodrigo Janot.

O inverso também é verdadeiro. Se for derrotado, a incipiente recuperação econômica estará comprometida, com as expectativas dos investidores voltando à estaca zero. Sua base de sustentação iria para o espaço, com cada um cuidando de si, e seu governo entraria em estado terminal. Seus flancos estariam absolutamente desguarnecidos para enfrentar a artilharia pesada da Lava-Jato.

Quando assumiu o governo, Temer estabeleceu sua estratégia para travar as batalhas das reformas tendo em mente que o Teatro de Operações seria o Congresso Nacional. Isso explica, em grande parte, sua opção por estabelecer um contrato de risco com partidos e políticos tradicionais, mesmo sabendo que, com a Lava-Jato, estaria sujeito a tempestades e trovoadas.

Não fez o governo de notáveis, ficou de costas para o sentimento da sociedade e perdeu outra batalha, a das ruas, com sua popularidade em plano inclinado. Mas montou uma base de sustentação mastodôntica no Parlamento e escolheu um estado-maior profundamente conhecedor do Teatro de Operações e de como as tropas se movimentam dentro dele.

A estratégia parecia correta, sobretudo porque a outra frente – a economia – fora blindada com a escalação de uma equipe preparada e um comandante altamente competente.  Mesmo o fato de o PIB de 2016, divulgado nesta terça-feira, ter decrescido 3,6% tende a ser interpretado como um olhar pelo retrovisor, porque a equipe econômica começou a entregar a mercadoria encomendada.

Mas tudo começou a se complicar com o strike da Lava-jato. Um a um de seus generais da política foram caindo ou seriamente feridos. O próprio presidente também foi atingido, embora não fatalmente.

Com seu estado-maior em liquefação, Temer teve de se comportar como comandantes em chefe que, diante do perigo, vão para a linha de frente da batalha.

E ele foi. É do ramo, conhece bem o terreno e 80% do Congresso faz parte de sua base de sustentação. Se não conta mais com um estado-maior do mesmo quilate de antes, tem ao seu lado uma força-tarefa que não é composta por amadores.

As dificuldades se agudizam quando se leva em conta o fator tempo. Se não aprovar a reforma da Previdência no primeiro semestre, as condições serão ainda mais adversas no segundo, véspera do ano eleitoral, quando a sobrevivência fala mais alto e os parlamentares só têm olhos para a reeleição.

A dissintonia entre o tempo da crise política e o tempo da economia também joga contra. A crise se desenrola de forma célere, enquanto a economia real, aquela capaz de mudar o humor dos brasileiros, só dará sinais de reanimação nos meses finais do ano.

Em um Congresso refratário a medidas impopulares, não dá muito para confiar no ardor patriótico dos parlamentares. É previsível que o presidente terá de fazer novas concessões à sua base, para vencer a guerra.
Só não pode ceder no núcleo central da reforma – idade mínima de 65 anos e regras de transição para quem esta perto de se aposentar, segundo sua própria avaliação.

Se conseguir aprovar apenas uma reforma pífia, Temer sairá de sua batalha mãe não como Wellington saiu de Waterloo, mas como Pirro.

Com a guerra em curso, ele redefiniu sua estratégia: dobrou as apostas na economia como caminho para superar a crise política. Se conseguir convencer a tropa de que essa é a rota da salvação, pode até ser favorecido pelos deuses da guerra.

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Este artigo foi publicado originalmente no site do jornal O Globo, no Blog do Noblat:

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O legado de Serra

Jorge William (Foto: Agência O Globo)

José Serra (Foto: Jorge Willian / Agência O Globo)

 

por Hubert Alquéres

Pode-se indagar se a rápida passagem do senador José Serra no Ministério das Relações Exteriores deixou um legado para o seu sucessor. A resposta é sim, se for considerada a brutal inflexão da política externa brasileira sob seu comando, quando comparada à política terceiro-mundista e ideologizada da era do lulopetismo.

Serra não criou uma nova concepção de política externa. Apenas resgatou os pilares da diplomacia brasileira vigentes desde os tempos de Rio Branco. E isso fez toda diferença.

A política diplomática construída pelo Itamaraty ao longo do tempo sempre teve como norte a defesa dos interesses nacionais e a observância dos princípios da autodeterminação dos povos, da não-intervenção, da defesa da democracia e dos direitos humanos.

Nela, não havia espaço para alinhamentos automáticos ditados por afinidades ideológicas. Observados os princípios consagrados pelo concerto mundial das nações, valia o pragmatismo responsável com vistas a alcançar os melhores resultados para o Brasil.

Ao longo de nossa história, praticamente não houve descontinuidade desses ditames. Mesmo no regime militar eles foram observados, particularmente no período Azeredo da Silveira, quando o Itamaraty deu provas de sua maestria.

A política permanente de Estado construída por sucessivos governos foi capturada quando o lulopetismo chegou ao poder.

Deixou de ser de Estado para ser de um partido, orientada por critérios e afinidades ideológicas. Instalou-se um dualismo na política externa, com “áreas de influência” sendo divididas entre o então chanceler Celso Amorim e o assessor especial da presidência, Marco Aurélio Garcia.

A priorização das relações com os países bolivarianos levou o Brasil a perder densidade, a se isolar nas relações comerciais, ficando praticamente confinado a um Mercosul ideologizado e de costas para o restante do planeta.

Paulatinamente o Itamaraty foi perdendo densidade, até ficar, literalmente, entregue às baratas nos anos abúlicos da presidente deposta Dilma Rousseff, sem recursos para fazer frente aos mais comezinhos custeios.

O ponto de inflexão efetivada no governo Michel Temer foi devolver ao Itamaraty o papel de formulador da política externa, de articulador das ações internacionais do Brasil. O Ministério do Exterior deixou de ter um papel subalterno voltando à posição de protagonista da política externa.

A maior mudança foi no foco. Com a descontaminação ideológica da política externa, sua centralidade passou a ser a busca de uma maior inserção do Brasil na economia mundial por meio de acordos voltados para a abertura de novos mercados para produtos e serviços brasileiros.

A guinada se dá em uma conjuntura de transição e tensão nas relações da economia mundial, face às incertezas geradas pela eleição de Donald Trump. O pragmatismo responsável volta a se colocar na ordem do dia, para o Brasil fazer valer seus interesses e saber se beneficiar da onda protecionista.

Essa onda, iniciada na Europa com a vitória do Brexit na Grã-Bretanha, pode mudar de patamar se a nacional-populista de direita Marine Le Pen vencer as eleições francesas.

O novo quadro afetará o desenho dos blocos econômicos e a geografia da economia mundial, com a Ásia – e principalmente a China – sendo a estrela ascendente, e os Estados Unidos cadente, caso Trump efetive seu programa.

O Itamaraty entendeu os novos tempos, soube se deslocar em todas as direções, sem excluir qualquer possibilidade de parceria. O redesenho do Mercosul, a aproximação com a Aliança do Pacífico (México, Chile, Colômbia e Peru) e com a União Europeia, a busca de acordos bilaterais com Trump, os oito acordos assinados com a China, são lances de um jogo multifacetado que vai do Sul-Sul ao Sul-Norte, Sul-Leste, Sul-Oeste.

Nele, sairão vencedores os países de política externa calcada em três virtudes: pragmatismo, pragmatismo e pragmatismo. Serra mais do que compreendeu as regras do jogo, fez a diplomacia brasileira voltar ao seu leito natural.

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Este artigo foi publicado originalmente no site do jornal O Globo, no Blog do Noblat:

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