A guerra perdida de Guedes

O ministro Paulo Guedes deve estar curtindo uma ressaca brava, daquelas que deixam a boca com gosto de cabo de guarda-chuva e o estômago embrulhado. O que era para ser seu grande momento de brilho nesses tempos de pandemia – o anúncio de um novo pacote econômico com a instituição do Renda Brasil, a definição do novo marco regulatório das privatizações e a continuidade do auxílio emergencial – tornou-se a comprovação de que o Posto Ipiranga já não conta com o mesmo prestígio perante o presidente.

É a primeira vez que abertamente Jair Bolsonaro diverge do ministro a quem dizia ter carta branca. Mandou refazer sua proposta para o Auxílio Emergencial e o Renda Brasil, e, de quebra, prestigiou o rival de Guedes, Rogério Marinho, ao lançar o programa Casa Verde e Amarela. Em baixa, o ministro da Economia trava uma batalha em um terreno que não é a sua praia, o da gastança.

Como bom bonapartista que se relaciona diretamente com as massas, Bolsonaro descobriu o enorme potencial de votos de programas de transferência de renda. Soma-se a isso o projeto nacional-desenvolvimentista do principal núcleo do governo, os militares, em aliança com os ministros paisanos Rogério Marinho e Tarcísio Freitas.

A cabeça de Bolsonaro sempre foi intervencionista, rendeu-se ao liberalismo da escola austríaca pregado pelo seu czar da economia por conveniência e não por convicção.

Ocorre que o tempo passou na janela e só Paulo Guedes não viu. Perdeu o timing para o seu receituário de levar adiante as reformas estruturantes e um amplo programa de privatização. Eles atendiam bem às necessidades do pré-pandemia, mas são insuficientes para responder à nova realidade. Acrescente-se a incapacidade mastodôntica do ministro de tirar do papel políticas teoricamente corretas.

Não apenas por sua culpa, mas também por ela, as reformas empacaram. A cada dia o governo encolhe um pouco mais sua proposta de reforma tributária e a administrativa simplesmente sumiu do mapa. O programa de privatizações revelou-se um fiasco tão grande que o responsável por ele, Salim Mattar, pegou o boné.

Guedes tem um problema crônico. Promete muito e entrega pouco.

Prometeu arrecadar mais de um trilhão de reais com as privatizações e outro trilhão com a venda de imóveis do governo. Passaram-se dois anos e Bolsonaro não viu a cor desse dinheiro. Se tivesse cumprido um terço de sua promessa, o governo estaria agora nadando em dinheiro, com recursos suficientes para bancar investimentos reclamados pelos desenvolvimentistas e para financiar um programa robusto de renda básica.

Nada indica que esse quadro mudará da noite para o dia. Segundo a nova secretária Martha Seillier é impossível reduzir o prazo de uma privatização de dois anos para três ou quatro meses. Por esse calendário, até 2021 o governo conseguirá, no máximo, privatizar estatais de pouco valor, como o Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada, cujo patrimônio é de R$ 100 milhões (isso mesmo, milhões!) e a CBTU, de patrimônio negativo.

O filé mignon – Correios, Eletrobras e Telebrás – só seria privatizado em 2022, ou seja na boca da disputa presidencial. Assim mesmo, é preciso combinar com os russos, no caso, o Centrão. Há no Parlamento uma ampla frente contrária a privatizações de empresas como Eletrobras.

Sem os pilares de sua estratégia, restou a Guedes agarrar-se à âncora do teto dos gastos, travando uma guerra defensiva que é praticamente perdida. O caminho que ele tem traçado para atender às pressões de Bolsonaro sem furar o teto dos gastos traz consigo o risco de desgaste político do presidente com outros setores.

O ministro quer descobrir um santo para vestir outro.

Pretende tirar dinheiro dos idosos beneficiários do programa Farmácia Popular, do abono salarial e das rubricas de dedução do imposto de renda para bancar o Renda Brasil. A conferir se o Congresso aprovará esse pacote de maldades.

As águas correm para o moinho dos desenvolvimentistas. Se tiver de escolher entre o apoio do mercado e o dos grotões que turbinaram a aprovação de seu governo, não é difícil saber qual será a opção de Bolsonaro.

Só que em um país com as contas desorganizadas isso pode ter efeito deletério, como a volta da inflação e a explosão da dívida pública. Uma coisa é a Inglaterra de Boris Johnson, que fez suas reformas estruturantes ainda no governo de Margareth Thatcher, se sentir em condições de aplicar um programa “rooseveltiano”. Outra é o Brasil pensar em seguir caminho semelhante.

Há sempre a tentação de imprimir dinheiro novo, como recomendam alguns economistas considerados sérios, entre eles André Lara Resende. O Brasil tem uma experiência traumática de girar a manivela de imprimir dinheiro: o “encilhamento”, do então ministro da Fazenda Rui Barbosa, no governo de Deodoro da Fonseca. Ele quis financiar a industrialização com a emissão de papel-moeda. O resultado foi uma onda especulativa que desencadeou um amplo processo inflacionário.

Guedes está naquela situação de Napoleão, com todo mundo querendo saber como ele perdeu a guerra. Sua derrota não é sinônimo de vitória do Brasil. O neodesenvolvimentismo tem tudo para ser a reprodução do desastroso período presidencial do general Ernesto Geisel ou dos dias infelizes de Dilma Rousseff.

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Hubert Alquéres é membro da Academia Paulista de Educação. Foi professor na Escola Politécnica da USP. Escreve as 4as feiras no site da revista Veja.

A guilhotina do cancelamento

Por Hubert Alquéres

Devemos ao iluminismo do século 18 o direito ao dissenso e ao livre pensamento. Antes, as divergências de ideias eram resolvidas pela via da eliminação física. Basta lembrar os tempos da Santa Inquisição em que os hereges iam para a fogueira. Ou que em 1616 Galileu Galilei, cientista, físico, matemático, astrônomo e filósofo italiano, entrou para o index da Congregação do Santo Ofício e foi ameaçado de pena de morte ao comprovar e defender a teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico, segundo a qual a Terra e os planetas giravam em torno do sol. Teve de se desdizer publicamente, mas não deixou de estar certo.

A Revolução Francesa, com seus valores de liberdade, igualdade e fraternidade, abriu uma nova era, a idade da razão, produto do século das luzes. Os pensadores do iluminismo, John Locke, Montesquieu, Rousseau, Adam Smith, nos deixaram um legado inestimável.

Nem por isso, a sociedade moderna deixou de viver momentos de supressão das discordâncias das ideias pela via da violência, da eliminação física e da destruição de reputações. O nazismo alemão, a ditadura soviética, a revolução cultural chinesa, o macarthismo dos anos 50 nos Estados Unidos são exemplos disto. Ao final do século 20, com a derrocada do “socialismo real”, o ciclo do totalitarismo parecia ter se encerrado e os valores liberais pareciam ser os grandes vitoriosos.

Como a história não é linear, voltamos a viver novos retrocessos no século 21. A fogueira onde os “hereges” contemporâneos são queimados não é mais a do Santo Ofício. Nem a guilhotina que serviu para decapitar 2.794 “inimigos da Revolução” em Paris. Hoje quem desempenha este papel são as redes sociais, onde o fenômeno da cultura do cancelamento reina livre, leve e solto.

Por meio dele, ataca-se a sobrevivência econômica de empresas e pessoas, destrói-se reputações de forma irreversível. Pratica-se um revisionismo histórico que ignora as circunstâncias de cada era, como se fosse possível analisar fatos acontecidos há mais de cinco séculos com a métrica e valores de hoje.  Figuras históricas como Cristóvão Colombo, Monteiro Lobato e Princesa Isabel são submetidas ao crivo da nova inquisição.

Do ponto de vista ideológico, a cultura do cancelamento é pluralista. Identitaristas de esquerda e de direita a praticam exaustivamente. Um artigo da antropóloga Lilia Schwarcz sobre o álbum visual Black is King, da cantora Beyoncé, foi o suficiente para uma campanha de difamação deflagrada por movimentos negros, furibundos porque a antropóloga criticou o álbum por glamourizar a negritude. Levada ao pelourinho, teve de fazer o “mea culpa”, muito embora não haja uma só vírgula de racismo em sua análise.

Caso semelhante aconteceu com a autora da série Harry Porter, J.K Rowling, execrada nas redes sociais por ter dado uma declaração na qual dizia que havia diferenças biológicas entre o homem e a mulher. Não deu outra, foi acusada de machista e teve de se explicar publicamente.

A tática de atacar a sobrevivência das pessoas tem se mostrado eficaz. A influenciadora digital Gabriela Pugliesi teve prejuízo de 2 milhões de reais depois de ser cancelada por ter dado uma festa durante a pandemia. Nos Estados Unidos, um pesquisador contratado por uma consultoria progressista foi demitido por ter divulgado no twitter um estudo no qual mostrava que, nos anos 60, protestos antirracistas violentos aumentavam o percentual de votos nos candidatos republicanos e quando aconteciam de forma pacífica favoreciam os democratas nas eleições.

Em vez de refletir sobre o estudo, militantes da causa antirracista usaram as redes sociais para exigir a demissão do pesquisador, por ver em seu estudo uma crítica às manifestações em protesto ao bárbaro assassinato de George Floyd.

Uma frase infeliz, um gesto mal interpretado, são motivos para destruir reputações construídas ao longo de toda uma vida. O médico Drauzio Varella deveria ser uma unanimidade nacional. Em vez disso, foi vítima de uma campanha difamatória por ter dado um abraço numa transexual presa por assassinar e estuprar uma criança.

A cultura do cancelamento reproduz o que o macarthismo fazia nos anos 50. O clima de intolerância, de supressão do contraditório, tornou-se irrespirável. É preciso abrir as janelas para os ventos da liberdade reoxigenar a humanidade.

A carta de 150 intelectuais americanos das mais variadas tendências políticas, divulgada no mês passado, foi um sopro de esperança. Entre seus signatários estão personalidades de esquerda como o linguista Noam Chomsky, escritores como o consagrado Salman Rushdie, autor de Os Versos Satânicos e vítima da intolerância do fundamentalismo islâmico, ou a autora e roteirista de Harry Porter, J. K. Rowling.

Diz a Carta: “A livre troca de informações e ideias, força vital de uma sociedade liberal, tem diariamente se tornado mais restrita. Enquanto esperávamos ver a censura partir da direita radical, ela está se espalhando também em nossa cultura: uma intolerância a visões opostas, um apelo à vergonha pública e ao ostracismo e a tendência de dissolver questões políticas complexas com uma certeza moral ofuscante”.

Os autores tocam num ponto nevrálgico. Não está em questão a justeza da causa dos direitos da mulher, dos negros, da diversidade de gênero, dos índios. Mas uma visão distorcida dessas causas findam por desservi-las ao segregar, em vez de unir. De certa forma, essa crítica já foi feita por Mark Lilla, em seu livro “O progressista de ontem e o de amanhã”. O antropólogo e historiador Antônio Risério também pôs o dedo na ferida ao apontar que movimentos que nasceram inclusivos se tornaram excludentes ao caírem no identitarismo.

O grande mal da cultura do cancelamento é seu reducionismo. O mundo é bem mais complexo do que o simplismo das redes sociais e suas guilhotinas.

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Hubert Alquéres é membro da Academia Paulista de Educação, da Câmara Brasileira do Livro e preside o Conselho Estadual de Educação. Foi professor na Escola Politécnica da USP, na Escola de Engenharia Mauá e no Colégio Bandeirantes. Escreve as 4as feiras no site da revista Veja.

A guilhotina do cancelamento

https://veja.abril.com.br/blog/noblat/a-guilhotina-do-cancelamento-por-hubert-alqueres/

Devemos ao iluminismo do século 18 o direito ao dissenso e ao livre pensamento. Antes, as divergências de ideias eram resolvidas pela via da eliminação física. Basta lembrar os tempos da Santa Inquisição em que os hereges iam para a fogueira. Ou que em 1616 Galileu Galilei, cientista, físico, matemático, astrônomo e filósofo italiano, entrou para o index da Congregação do Santo Ofício e foi ameaçado de pena de morte ao comprovar e defender a teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico, segundo a qual a Terra e os planetas giravam em torno do sol. Teve de se desdizer publicamente, mas não deixou de estar certo.

A Revolução Francesa, com seus valores de liberdade, igualdade e fraternidade, abriu uma nova era, a idade da razão, produto do século das luzes. Os pensadores do iluminismo, John Locke, Montesquieu, Rousseau, Adam Smith, nos deixaram um legado inestimável.

Nem por isso, a sociedade moderna deixou de viver momentos de supressão das discordâncias das ideias pela via da violência, da eliminação física e da destruição de reputações. O nazismo alemão, a ditadura soviética, a revolução cultural chinesa, o macarthismo dos anos 50 nos Estados Unidos são exemplos disto. Ao final do século 20, com a derrocada do “socialismo real”, o ciclo do totalitarismo parecia ter se encerrado e os valores liberais pareciam ser os grandes vitoriosos.

Como a história não é linear, voltamos a viver novos retrocessos no século 21. A fogueira onde os “hereges” contemporâneos são queimados não é mais a do Santo Ofício. Nem a guilhotina que serviu para decapitar 2.794 “inimigos da Revolução” em Paris. Hoje quem desempenha este papel são as redes sociais, onde o fenômeno da cultura do cancelamento reina livre, leve e solto.

Por meio dele, ataca-se a sobrevivência econômica de empresas e pessoas, destrói-se reputações de forma irreversível. Pratica-se um revisionismo histórico que ignora as circunstâncias de cada era, como se fosse possível analisar fatos acontecidos há mais de cinco séculos com a métrica e valores de hoje.  Figuras históricas como Cristóvão Colombo, Monteiro Lobato e Princesa Isabel são submetidas ao crivo da nova inquisição.

Do ponto de vista ideológico, a cultura do cancelamento é pluralista. Identitaristas de esquerda e de direita a praticam exaustivamente. Um artigo da antropóloga Lilia Schwarcz sobre o álbum visual Black is King, da cantora Beyoncé, foi o suficiente para uma campanha de difamação deflagrada por movimentos negros, furibundos porque a antropóloga criticou o álbum por glamourizar a negritude. Levada ao pelourinho, teve de fazer o “mea culpa”, muito embora não haja uma só vírgula de racismo em sua análise.

Caso semelhante aconteceu com a autora da série Harry Porter, J.K Rowling, execrada nas redes sociais por ter dado uma declaração na qual dizia que havia diferenças biológicas entre o homem e a mulher. Não deu outra, foi acusada de machista e teve de se explicar publicamente.

A tática de atacar a sobrevivência das pessoas tem se mostrado eficaz. A influenciadora digital Gabriela Pugliesi teve prejuízo de 2 milhões de reais depois de ser cancelada por ter dado uma festa durante a pandemia. Nos Estados Unidos, um pesquisador contratado por uma consultoria progressista foi demitido por ter divulgado no twitter um estudo no qual mostrava que, nos anos 60, protestos antirracistas violentos aumentavam o percentual de votos nos candidatos republicanos e quando aconteciam de forma pacífica favoreciam os democratas nas eleições.

Em vez de refletir sobre o estudo, militantes da causa antirracista usaram as redes sociais para exigir a demissão do pesquisador, por ver em seu estudo uma crítica às manifestações em protesto ao bárbaro assassinato de George Floyd.

Uma frase infeliz, um gesto mal interpretado, são motivos para destruir reputações construídas ao longo de toda uma vida. O médico Drauzio Varella deveria ser uma unanimidade nacional. Em vez disso, foi vítima de uma campanha difamatória por ter dado um abraço numa transexual presa por assassinar e estuprar uma criança.

A cultura do cancelamento reproduz o que o macarthismo fazia nos anos 50. O clima de intolerância, de supressão do contraditório, tornou-se irrespirável. É preciso abrir as janelas para os ventos da liberdade reoxigenar a humanidade.

A carta de 150 intelectuais americanos das mais variadas tendências políticas, divulgada no mês passado, foi um sopro de esperança. Entre seus signatários estão personalidades de esquerda como o linguista Noam Chomsky, escritores como o consagrado Salman Rushdie, autor de Os Versos Satânicos e vítima da intolerância do fundamentalismo islâmico, ou a autora e roteirista de Harry Porter, J. K. Rowling.

Diz a Carta: “A livre troca de informações e ideias, força vital de uma sociedade liberal, tem diariamente se tornado mais restrita. Enquanto esperávamos ver a censura partir da direita radical, ela está se espalhando também em nossa cultura: uma intolerância a visões opostas, um apelo à vergonha pública e ao ostracismo e a tendência de dissolver questões políticas complexas com uma certeza moral ofuscante”.

Os autores tocam num ponto nevrálgico. Não está em questão a justeza da causa dos direitos da mulher, dos negros, da diversidade de gênero, dos índios. Mas uma visão distorcida dessas causas findam por desservi-las ao segregar, em vez de unir. De certa forma, essa crítica já foi feita por Mark Lilla, em seu livro “O progressista de ontem e o de amanhã”. O antropólogo e historiador Antônio Risério também pôs o dedo na ferida ao apontar que movimentos que nasceram inclusivos se tornaram excludentes ao caírem no identitarismo.

O grande mal da cultura do cancelamento é seu reducionismo. O mundo é bem mais complexo do que o simplismo das redes sociais e suas guilhotinas.

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Hubert Alquéres é membro da Academia Paulista de Educação, da Câmara Brasileira do Livro e preside o Conselho Estadual de Educação. Foi professor na Escola Politécnica da USP, na Escola de Engenharia Mauá e no Colégio Bandeirantes. Escreve as 4as feiras no site da revista Veja: https://veja.abril.com.br/blog/noblat/a-guilhotina-do-cancelamento-por-hubert-alqueres/

Não é só o auxílio emergencial

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Até meados de junho havia um sentimento generalizado de que o governo Bolsonaro marchava para uma crise terminal. Seu péssimo desempenho diante da pandemia, as demissões dos ministros Luiz Henrique Mandetta e Sérgio Moro, os conflitos com os outros dois poderes, a participação em atos antidemocráticos e a queda nas pesquisas davam a impressão de que o presidente estava à beira de um nocaute e o impeachment era apenas uma questão de tempo. Mesmo analistas comedidos avaliavam que a derrocada era iminente. Restava apenas saber a velocidade do seu andar e a distância a ser percorrida.

Menos de dois meses depois, o quadro é outro. Bolsonaro saiu do canto do ringue, inverteu, para cima, a curva de sua popularidade. Seu avanço nos redutos eleitorais do PT já preocupa expoentes do petismo como André Singer, que vê o lulismo, pela primeira vez, diante de séria ameaça.

O que teria levado a uma mudança do cenário em tão pouco tempo?

É consensual a avaliação sobre o peso do auxílio emergencial mas apenas ele não explica tudo. Uma recente live da Fundação Fernando Henrique Cardoso com os pesquisadores Maurício Moura, fundador da Big Idea Data, e Esther Solano, professora da Universidade Federal de São Paulo (o primeiro especialista em pesquisa quantitativa e a segunda em qualitativa), desnudou um pouco o emaranhado de fatores responsáveis pela recuperação da aprovação do presidente.

A razia do auxílio de R$ 600 na base social do lulopetismo se explica porque nas cidades médias e pequenas, particularmente nos grotões do Nordeste, esse valor representou um choque de renda, com impacto direto no consumo das pessoas e em uma economia cujo peso na nossa formação foi bem descrito pelo livro História da Riqueza do Brasil, de Jorge Caldeira.

Paradoxalmente, a pandemia provocou um “boom” em municípios onde pessoas beneficiárias do Bolsa Família dobraram ou triplicaram sua renda de uma hora para outra. Segundo Moura, pesquisa recente da Big Ideia Data detectou que oito em cada dez beneficiários do auxílio emergencial das pequenas e médias cidades acreditam que o benefício será permanente e com esse valor.

Não se sabe qual será o humor dessa população se, ou quando, o sonho acabar. Mas é fato que o bolsonarismo se deslocou das grandes cidades e regiões metropolitanas para as cidades pequenas e médias. E das classes média e alta para as D e E.

Nas pesquisas qualitativas aparecem razões mais profundas para a resiliência do bolsonarismo. Segundo o levantamento coordenado por Esther, a imagem do presidente foi afetada durante os meses de pandemia, mas o dano tem sido neutralizado. Para a população mais pobre, ele foi irresponsável no combate à Covid-19 e “desumano ao debochar dos mortos”, o que é grave para quem se diz terrivelmente evangélico.

Há, contudo, o outro lado da moeda. A estratégia pautada na dicotomia vida versus economia produziu resultados. Para os setores populares, a orientação fique em casa é um luxo ao qual não se podem dar ao direito. Ele tem medo da doença, mas tem muito mais temor de morrer de fome, perder o emprego ou ver sua família passando por necessidades. Ou seja, a narrativa construída pelo governo impactou nessa população desprotegida.

De acordo com as qualis, Bolsonaro teria ainda logrado êxito na terceirização da culpa pelas mortes. Pasmem, em São Paulo ela é atribuída mais ao governador do que ao presidente.

A resiliência se explicaria também porque ainda são fortes alguns dos fatores responsáveis pela eleição de Bolsonaro: a “criminalização do política”, a  “cristianização da esfera pública”, com os valores da religião fazendo parte do embate político;  e a “militarização da política”, na qual valores como hierarquia, disciplina, controle, ordem, segurança também são aspirações dos mais pobres.

A pauta dos valores está no centro do cotidiano dessas pessoas e a família é a principal estrutura organizacional da periferia. Daí vem parte importante da resiliência do presidente, por ser identificado como um defensor da família e de seus valores. Essa é também fonte do peso dos evangélicos. São eles que chegam junto às pessoas necessitadas. É como respondeu uma moradora do Complexo da Maré: “aqui ou é o crime ou a Igreja. Vocês (o Estado) não existem”. 

Sentimentos como empoderamento, empreendedorismo, meritocracia aparecem de forma muito clara e há um forte rechaço das causas identitárias. Elas são vistas como uma ameaça aos valores da família ou como defensoras de privilégios. De forma reducionista, criticam movimentos identitários por ficarem lutando pelo negro, pela mulher, em vez de lutar pelo trabalhador, pelo emprego. Essa crítica é feita ao próprio PT, que teria deixado de lutar pelos trabalhadores.

Avesso ao populismo que alavancou Bolsonaro e o PT de Lula, o chamado campo democrático tem sido incapaz de dialogar com os valores morais e religiosos dessa população. No caso do PT, a estratégia de carimbá-lo como o partido antifamília colou. Desmontar essa percepção é quase uma missão impossível.

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Hubert Alquéres é membro da Academia Paulista de Educação e presidente do Conselho Estadual de Educação. Foi professor na Escola Politécnica da USP. Escreve as 4as feiras no site da revista Veja:

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Hiroshima paira sobre nós

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A morte caiu do céu sobre Hiroshima, às 8h45 de 6 de agosto de 1945. Do ventre do Enola Gay, um bombardeiro B-29, saiu o primeiro artefato nuclear usado em uma guerra. A bomba atômica tinha um nome inofensivo, Little Boy, mas era terrivelmente mortífera. Cento e quarenta mil pessoas perderam suas vidas em Hiroshima. Outras 70 mil morreriam dias depois, quando a segunda bomba estourou em Nagasaki. Mais 130 mil morreriam até 1950 em consequência da radiação.

Os horrores da “rosa radioativa estúpida e inválida”, inspiraram filmes e livros. O mais célebre deles, Chuva Negra, de Masuji Ibuse, baseado em diários de sobreviventes de Hiroshima, descreve a destruição gigantesca, a peregrinação dos sobreviventes em estradas cheias de corpos, o desconhecimento dos efeitos da radiação. Impossível esquecer a cena de uma menina de três anos brincando, à beira de uma estrada, com os seios do cadáver de sua mãe.

Mais estúpida do que a Rosa de Hiroshima, só a corrida nuclear que a sucedeu. Na Conferência de Potsdam, realizada menos de um mês antes da utilização da primeira bomba atômica, Harry Truman, presidente dos Estados Unidos, informou a Josef Stalin que seu país tinha uma nova arma com enorme potencial de destruição. O ditador soviético não passou recibo. Desde 1943 a URSS também estava desenvolvendo seu projeto bélico nuclear. Os EUA saíram na frente, mas em 1949 os soviéticos testaram, com sucesso, sua primeira bomba de hidrogênio.

“Little Boy” foi o marco zero da insana corrida que pôs a humanidade diante da possibilidade de um holocausto nuclear. Por pouco não aconteceu na crise do mísseis de 1962. Durante a guerra fria, o mundo esteve sob ameaça de um paiol nuclear constituído por 69.200 artefatos. Estados Unidos e União Soviética disputavam quem poderia destruir o planeta mais vezes.

Essa lógica foi invertida em 1987, com o acordo histórico assinado entre Ronald Reagan e Mikhail Gorbatchov, conhecido como Tratado das Forças Nucleares de Alcance Intermediário – INF, em inglês. Foi o primeiro acordo de destruição de artefatos nucleares. O número reduziu significativamente para 13.400. Novo avanço seria dado em 1991, com a assinatura do Tratado de Redução de Armas Estratégicas – Start.

Com o fim da União Soviética e da guerra fria, parecia que marchávamos para um mundo desnuclearizado do ponto de vista bélico. O risco de novas Hiroshimas pareciam desaparecer e a tragédia ficava viva na memória da humanidade como um exemplo que jamais deveria ocorrer novamente.

Para promover a conciliação com o passado, Barack Obama visitou a cidade japonesa bombardeada pelo Enola Gay. Foi o primeiro presidente americano a pôr os pés em Hiroshima. Ao relembrar o tenebroso 6 de agosto de 1945 afirmou: “Era uma manhã luminosa e nublada. A morte caiu do céu e o mundo mudou.”

Ao final da primeira década deste século havia um clima de otimismo quanto a novos avanços no desarmamento nuclear. Obama assinou o acordo com o Irã e mais um tratado de redução de armas estratégicas, conhecido como Novo Start. O céu estava claro. Cobriu-se de nuvens quando Donald Trump anunciou, em 2018, a nova doutrina americana para armas nucleares. Foi o ponto de partida para ressuscitar a corrida armamentista com os mesmos personagens: Estados Unidos e Rússia.

O ponto central da nova doutrina são artefatos nucleares táticos transportados por submarinos, que podem ser acionados contra alvos específicos, possivelmente do Irã ou da Coreia do Norte, aliados da Rússia de Wladimir Putin. Ao mesmo tempo, Trump retirou os Estados Unidos do tratado de armas de médio alcance e também pretende se retirar do tratado de armas estratégicas, cuja vigência encerra-se em fevereiro de 2021. O presidente americano anunciou ainda a intenção de criar um “guarda-chuva” anti arma nuclear no leste da Europa e de realizar o primeiro teste nuclear depois de 32 anos.

O país de Putin também não deixou por menos. Ameaçou retaliar qualquer ataque a alvos específicos de seu país ou de países aliados. A Rússia voltou a investir pesado em armamento nuclear, desenvolvendo um míssil hipersônico com uma velocidade 27 vezes maior do que a do som e capaz de realizar manobras para vencer qualquer defesa antiaérea. O país tem ainda um superpoderoso artefato, o chamado “míssil do juízo final”, com poder de destruir a costa leste dos Estados Unidos.

Rússia e Estados Unidos têm 92% do armamento nuclear do planeta, o que dá bem uma ideia do poder destrutivo de um confronto nuclear entre as duas potências. Passados 75 anos, a humanidade não se livrou do fantasma de Hiroshima. Ele continua pairando sobre nossas cabeças, como uma rosa com cirrose hepática, a anti-rosa atômica, sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada, dos versos de Vinícius de Morais.

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Hubert Alquéres é membro da Academia Paulista de Educação, da Câmara Brasileira do Livro e preside o Conselho Estadual de Educação. Foi professor na Escola Politécnica da USP, na Escola de Engenharia Mauá e no Colégio Bandeirantes. Escreve as 4as feiras no site da revista Veja: https://veja.abril.com.br/blog/noblat/hiroshima-paira-sobre-nos-por-hubert-alqueres/