O legado de Temer

Certamente seu governo seria bem mais virtuoso, se não fosse o fatídico 17 de maio de 2017,

Sim, Michel Temer foi o primeiro presidente denunciado por suspeita de corrupção em pleno exercício do mandato. Sim, chega ao fim de seu governo com altíssimo nível de desaprovação. Sim, não teve condições sequer de ter um candidato que defendesse seu legado. Mas apesar dos pesares, entrega ao seu sucessor um país bem mais organizado do que recebeu. E é possível que seja atribuído a ele o mérito de ter lançado as bases para o Brasil retomar o crescimento sustentável, se Jair Bolsonaro aprofundar a agenda reformista iniciada no governo Temer.

Sua política econômica foi vitoriosa nas urnas. Tanto assim que a política anunciada pela equipe capitaneada por Paulo Guedes não é de ruptura. É de continuidade, de aprofundamento na direção do saneamento das contas públicas e de desengessamento da economia. A ruptura defendida por Fernando Haddad foi incontestavelmente derrotada no voto. Temer, portanto, não deixa de ter razão ao se sentir um vitorioso, como externou em entrevista ao Correio Braziliense.

Ao final do governo, o presidente tem números a apresentar, sobretudo quando comparados com a era de Dilma Rousseff. A inflação, antes na casa de dois dígitos, está abaixo da meta de 4,5%, enquanto que em dois anos a taxa básica de juros recuou de 14,5% para 6,5%. Não se vislumbra no horizonte o retorno da inflação e da elevação dos juros.

Resgatou também a credibilidade da política monetária, duramente afetada pelo intervencionismo de sua antecessora.

A retomada do crescimento e a recuperação do emprego foram lentas e irrisórias, é verdade. Mas se deve levar em consideração a ruína causada pela “nova matriz econômica”, cuja herança foi a queda de quase 10% do PIB e os 14 milhões de desempregados.

Na economia as coisas acontecem assim: os danos de uma política equivocada vem a galope, mas o conserto de seus desajustes demandam tempo e muito sacrifício.

Entre os ativos de Temer estão ainda a reforma trabalhista, a emenda constitucional do teto de gastos e a recuperação das estatais.

A Petrobras saiu das páginas policiais, voltou a dar lucro, se valorizou, retomou sua capacidade de investir.  As empresas estatais retomaram seu caráter público. Alterações no marco regulatório do pré-sal tornaram atrativos os novos leilões, que devem gerar R$ 100 bilhões para o país. A bolsa-empresário do BNDES cedeu lugar a regras transparentes.

Credite-se a seu favor o retorno da política externa ao leito natural, deixando para trás o terceiro-mundismo e as relações ditadas por afinidades ideológicas dos tempos de Celso Amorim e Marco Aurélio Garcia. Na educação, foram dados passos importantes com a reforma do ensino médio e a definição da Base Nacional Curricular Comum para todo o ensino básico.

Certamente seu governo seria bem mais virtuoso, se não fosse o fatídico 17 de maio de 2017, quando veio a público a gravação de sua conversa nada republicana com Wesley Batista. A partir daí o presidente perdeu ímpeto reformista, dedicando-se principalmente a sua sobrevivência. E a custo altíssimo para o país.

Ao não levar adiante as reformas da Previdência e Tributária, Michel Temer abdicou do enfrentamento estrutural da crise fiscal, daí o pífio crescimento da economia e da pequena queda do desemprego.

Elas continuam inadiáveis.

A bola agora está com o novo presidente, Jair Bolsonaro. Mas, ao contrário de seu antecessor, o ex-capitão receberá uma herança bendita.

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Hubert Alquéres é professor e membro do Conselho Estadual de Educação (SP). Lecionou na Escola Politécnica da USP e no Colégio Bandeirantes e foi secretário-adjunto de Educação do Governo do Estado de São Paulo. Este artigo foi publicado originalmente no site da revista Veja, no Blog do Noblat:

O legado de Temer

De Deng a Jinping

A China do atual presidente Xi Jinping tem apenas 2% de chineses abaixo da linha da pobreza

A China comemora os 40 anos de suas quatro frentes de modernização (agricultura, indústria, tecnologia e forças armadas), iniciadas em 18 de dezembro de 1978 por Deng Xiaoping. Elas foram responsáveis por transformar o país mais populoso do mundo na segunda potência econômica do planeta. Como o Brasil costuma olhar pouco para o Oriente, não temos a exata noção do significado histórico de medidas que retiraram 740 milhões de chineses da linha da pobreza e, nestas quatro décadas, fizeram surgir metrópoles como Shenzhen, hoje considerada o vale do silício chinês.

Quando o comitê central do Partido Comunista da China aprovou suas frentes de modernização, o país de Deng era essencialmente rural, mais de 80% da sua população viviam com menos de 1,90 dólares – portanto em extrema pobreza.

A China do atual presidente Xi Jinping tem apenas 2% de chineses abaixo da linha da pobreza e uma potente classe média de 400 milhões de pessoas com padrão de consumo comparável ao dos países ocidentais.

Esse salto gigantesco se deu sobre os escombros de três pragas que quase destruíram uma sociedade milenar: o Grande Salto Para Frente de 1958/1961, com o “igualitarismo” das comunas rurais e a supressão das leis de mercado e do valor; os dez anos da Revolução Cultural maoísta, responsável pelo quase extermínio dos intelectuais e da ciência; e a ação da “gang dos quatro”, liderada pela esposa de Mao Tsé-Tung, madame Chiang Ching.

De uma economia baseada no planejamento estatal e no controle total dos meios de produção, típicos do modelo soviético, a reforma de Deng instituiu a exploração privada da terra pelos camponeses, iniciou um processo de privatização e de atração do capital privado com vistas à transferência tecnológica.

No discurso de comemoração dos 40 anos da modernização chinesa, Xi Jinping reafirmou o bordão de Deng de “construir o socialismo com características chinesas”. Pura retórica ideológica. A China é uma sociedade híbrida. Capitalista na economia – a iniciativa privada responde por 60% do PIB e 80% dos empregos – e com ditadura comunista.

A acumulação primitiva chinesa se deu por meio da super exploração da mão de obra, com baixos salários e jornadas exaustivas, e da degradação ambiental. Além de intensa repressão, como deixou evidenciado o Massacre da Paz Celestial de 1989.

Convém ao Brasil olhar com mais atenção para quem pode se tornar a principal potência do mundo. Em artigo publicado no último sábado, o cônsul geral da China, Ly Yamg, mandou um recado para o novo governo, bem ao estilo chinês: “o enorme poder de compra de 1,4 bilhões de habitantes da China é um mercado que o Brasil não está em condições de perder”. De fato, exportamos para a China desde aviões até grãos, com superávit comercial da ordem de quase U$ 30 bilhões. E os investimentos diretos chineses no nosso país foram de U$ 24 bilhões em 2017.

A China desafia o prognóstico de que o desenvolvimento econômico e o surgimento de uma moderna classe média naturalmente levariam à sua democratização. O discurso duro de Jinping tentou dissipar qualquer ilusão quanto ao fim do monopólio do poder nas mãos dos comunistas.

Mas, assim como em meados do século passado era inimaginável que a China pudesse se enveredar pelos modos de produção capitalista, quatro décadas é muito pouco para mensurar todos os impactos futuros das modernizações iniciadas por Deng Xiaoping. Quanto mais em uma sociedade milenar.

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Este artigo foi publicado originalmente no site da revista Veja, no Blog do Noblat:

De Deng a Jinping

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O AI-5 e a volta dos militares

Hoje retornam ao poder de forma democrática.

Cinquenta e quatro anos após o Brasil ter mergulhado no regime militar, as Forças Armadas voltam a ter proeminência na vida política nacional.

Não há, contudo, paralelo entre os dois momentos.

Em 1968, quando a 13 de dezembro editaram o Ato Institucional n° 5, os militares radicalizaram o regime para levar adiante seu projeto positivista de modernizar o país. O binômio segurança-desenvolvimento servia de justificativa para mandar a consciência às favas e escancarar o regime ditatorial.

Hoje retornam ao poder de forma democrática.

Mais do que isso. A presença em posições estratégicas no governo de Jair Bolsonaro, que também é capitão reformado do Exército, não autoriza a leitura de que estamos de novo sob um regime militar. O poder continua sendo civil, no sentido de estar subordinado à Constituição-Cidadã de 1988, e a cadeia de comando das Forças Armadas são as maiores interessadas em evitar a politização dos quartéis.

Também as circunstâncias históricas são outras. Em 1968 vivíamos em pleno clima de guerra fria. O mundo era dividido em dois blocos e sua radicalização se reproduzia aqui dentro. Com a ruína do “socialismo real” o “perigo do comunismo” deixou de existir, a não ser nas cabeças anacrônicas que não se reciclaram. Em escala planetária, as polarizações hoje são de outra natureza. São, na maior parte, consequência da globalização, que não deu respostas satisfatórias aos novos problemas.

Certa vez perguntaram ao primeiro ministro chinês Chu En-Lai qual a sua avaliação sobre a Revolução Francesa. Sua resposta foi que era muito cedo para uma conclusão, pois tinham se passado apenas 200 anos. Talvez o lapso de 50 anos seja insuficiente para uma análise isenta e desapaixonada do A1-5, pois muitos dos personagens daquele período ainda estão presentes no cenário nacional.

Os militares justificam o endurecimento da ditadura com o argumento de que o AI-5 foi necessário para combater a escalada do terrorismo praticado pela esquerda armada, como se tortura, assassinato, desaparecimento de opositores ao regime fossem o preço a pagar para livrar o país do fantasma do comunismo.

Já a esquerda que pegou em armas usa o AI-5 para justificar os sequestros, os atentados e assassinatos que praticou, como se não houvesse outros meios de se opor ao regime.

Um e outro omitem a realidade dos fatos. A radicalização da ditadura antecede o AI-5. Em 1965 os militares se anteciparam e romperam a aliança com o braço civil do regime -representado por Carlos Lacerda da UDN ou por Juscelino Kubitschek e Ulysses Guimarães do PSD -, adiando a eleição presidencial prevista para aquele ano. Também extinguiram os partidos e instituiram o bipartidarismo e a eleição indireta para presidente da República.

Já a esquerda armada optou por esse caminho logo após o golpe de 1964. O atentado a Artur da Costa e Silva foi em 1966. No mesmo ano o PC do B inicia a preparação da guerrilha do Araguaia e, em 12 de outubro de 1968, integrantes da guerrilha urbana de extrema-esquerda assassina em São Paulo o capitão norte-americano Charles Rodney Chandler.

As duas versões são fantasmas da guerra-fria da qual ainda não nos livramos por completo. O concreto é que o AI-5 fez mal a todos. Ao país, às instituições e à própria Forças Armadas.

Felizmente o estamento militar parece ter entendido o quanto foram nocivos os períodos em que intervieram na vida política nacional. Este não é apenas o pensamento do atual alto comando, mas uma cultura que se formou desde do recuo organizado para os quartéis.

Hoje as Forças Armadas estão dentro da ordem, da regra do jogo e com espírito democrático. E voltam ao poder legitimadas pelo voto.

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O AI-5 e a volta dos militares

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Não se compra a briga dos outros

Bolsonaro se antecipou em agrados à Trump

Episódios recentes são emblemáticos do quanto o pragmatismo responsável se impõe para que o Brasil não seja prejudicado no jogo das relações internacionais. Sem poder de retaliação, temos muito a perder se tomarmos para nós brigas alheias, onde os contendores ao final podem acabar se entendendo.

Vamos aos fatos.

Na Conferência do G20, realizada em Buenos Aires, Donald Trump e o presidente chinês Xi Jinping chegaram a um acordo no qual selaram uma trégua de 90 dias. Nos últimos meses nosso país se beneficiou do conflito entre Estados Unidos e China, ampliando em 30% sua exportação de soja. Os norte-americanos são nossos principais concorrentes na compra chinesa de produtos agrícolas. Com o acordo de Buenos Aires, estima-se que nossa exportação de soja possa ter um recuo de dez milhões de toneladas. O acordo é um passo significativo para o fim da guerra comercial entre as duas principais potências econômicas e terá impacto positivo na economia global.

Para nós o risco da perda terreno se torna iminente diante das manifestações do governo Jair Bolsonaro de alinhamento automático com os EUA. Estigmatizações do presidente e do novo chanceler criaram um clima pouco amistoso que pode levar o país asiático a jogar duro contra o Brasil e preferir a soja americana.

O presidente Maurício Macri, da Argentina, usou a Conferência para se projetar como liderança regional e interlocutor junto ao cenário internacional. Ajudou na aproximação dos EUA e China, aproveitando a oportunidade para aprofundar as relações com as duas maiores potências do mundo. A vizinha Argentina é outra concorrente do Brasil no agronegócio, podendo avançar em outros mercados, como o da União Europeia.

A primeira ação concreta do novo presidente brasileiro em política externa foi a recusa de sediar a Conferência do Clima da ONU, a COP-25, inicialmente prevista para ser realizada no Brasil em novembro de 2019. O argumento é insustentável. A Conferência poderia ameaçar a soberania brasileira na Amazônia. O presidente embaralha as cartas, confundindo o Acordo de Paris com a proposta do ex-presidente colombiano Juan Manuel Santos de um corredor ecológico, o tríplice A.

Na verdade, Bolsonaro se antecipou em agrados à Trump, que não assinou o acordo climático. O futuro presidente pode ser surpreendido a qualquer hora. Trump tem se mostrado pragmático, apesar de sua retórica. Isso se deu com a Coreia do Norte e agora com a China. Pode acontecer o mesmo na questão ambiental.

Ao desistir de sediar a COP-25, o Brasil abdicou de seu papel de liderança regional e de se afirmar no concerto mundial das nações. O próprio Bolsonaro perde uma oportunidade de se projetar. Esses são os prejuízos menores.

A fatura veio a cavalo. O presidente da França Emmanuel Macron condicionou a assinatura do acordo comercial da União Europeia e do Mercosul à posição do presidente eleito sobre o Acordo Climático de Paris. O agronegócio brasileiro pode perder terreno no mercado europeu se o Brasil sair do Acordo de Paris.

Não sabemos se o futuro presidente já leu “Juca Paranhos, o Barão do Rio Branco”, excelente biografia do patrono do Itamaraty escrita pelo diplomata e historiador Luís Cláudio Villafañe G. Santos, da Cia das Letras. Se não o fez, deveria fazer o mais rápido possível. O livro mostra o quanto o pragmatismo e a opção pela negociação trouxeram benefícios. Por esse caminho, garantimos a soberania do extremo oeste catarinense reivindicado pela Argentina. Também por aí impedimos que a França se apossasse de uma faixa de 260 mil km2, que ia do Amapá a uma parte de Rondônia.

Não é preciso inventar a roda nas relações internacionais. Basta seguir os princípios de uma política estruturada pelo Itamaraty ao longo de mais de um século.

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Não se compra a briga dos outros

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