As cinzas do PSDB

Hubert Alquéres

Quando Martinho da Vila cantou o samba “Renascer das cinzas”, a Vila Isabel virou um mar de lágrimas. Naquele ano a escola tinha dado o maior vexame no carnaval. Atravessou o samba, desafinou a bateria, na passarela desfilou sem harmonia. Só não caiu para o segundo grupo por causa da generosidade do júri. A Vila chorava de vergonha diante de uma derrota tão humilhante e o samba de Martinho servia de catarse para expurgar a dor contida no peito. Funcionou, no ano seguinte a Vila Isabel voltou a ser a escola maravilhosa, com um desfile de arrasar.

O PSDB sai das urnas na mesmíssima situação daquele carnaval desastroso da Vila Isabel. Seu mestre-sala foi muito mal na avenida, amargando um humilhante quarto lugar. Depois de 24 anos polarizando com o Partido dos Trabalhadores, não estará no desfile do segundo turno. Mais grave: o grande juri – os eleitores – lhe impuseram a maior derrota de sua história e suas alas se desentenderam, com alguns dos seus membros aderindo ao samba da “Unidos por Bolsonaro” ao apagar das luzes do primeiro turno. E pensar que dois anos antes os tucanos foram os grandes vencedores do carnaval, obtendo vitórias estupendas nas eleições municipais de 2016!

A derrota não é a mãe da vitória, mas é possível perder ganhando, acumulando forças para as batalhas futuras. Não foi o que aconteceu com o PSDB, que perdeu perdendo. Sai do teatro de operações sem um mínimo de consenso sobre como se posicionar na disputa do segundo turno e sem entender porque o eleitorado rejeitou seu samba-enredo. No seu caso, a derrota é um elemento altamente desagregador e põe em risco a possibilidade de seguir o samba de Martinho, renascendo das cinzas.

Pode até continuar existindo como agremiação partidária, com alguns governadores e um número razoável de parlamentares. Mas não terá brilho, ou protagonismo nacional, se não for capaz de ir à fundo nas causas da maior derrota de sua história e de formular um novo projeto para a nação. Nestas condições, pode se tornar satélite de projetos que estão aí na praça, com parte de suas fileiras aderindo ao populismo autoritário de esquerda e outra parte ao seu reverso, o populismo autoritário de direita.

A vitória tem muitos donos e a derrota é órfã, alguém já disse. O mais comum em momentos como este é se nomear um culpado como bode expiatório. Responsabilidades individuais devem ser buscadas. A começar pelas do próprio candidato, que não podem ser desprezadas. Sem dúvidas, a estratégia de não ocupar o campo do antipetismo revelou-se um desastre. Mas se entrar em um processo autofágico que eluda as causas reais da maior crise de sua história, não irá a lugar algum. Não há um único culpado, nem mesmo Aécio Neves. O esgarçamento dos tucanos sem dúvida deu um salto de patamar nos anos do aecismo, mas sua crise não nasceu em 2014, vem de longe.

Seguramente ela tem tudo a ver com a sua perda de identidade a partir de não saber defender seu legado. O fim da inflação em 1994 foi o maior ganho dos brasileiros, mas os tucanos foram incapazes de defender essa conquista e de apontar na atual disputa presidencial o quanto os candidatos Jair Bolsonaro e Fernando Haddad são uma ameaça a esse benefício cuja conquista custou tanto aos brasileiros.

No campo ético, o PSDB aviltou-se, nivelou-se por baixo. Se Aécio Neves tem muita culpa no cartório, o conjunto de suas lideranças também o tem em função de seu silêncio tumular e pela blindagem dos seus. No fatídico 17 de maio de 2017, quando veio à público a delação da JBS, os tucanos foram incapazes de cortar na própria carne e de deixar o governo Michel Temer de forma altiva.

O eleitorado é tudo, menos desmemoriado. Era óbvio que isso teria o seu preço na disputa presidencial. O PSDB não se antecipou e viu-se na constrangedora situação de ver pipocar em plena refrega episódios vexaminosos envolvendo o ex-governador do Paraná, Beto Richa, e o vice-presidente nacional do partido, Marconi Perillo. A tempestade perfeita que se abateu sobre a campanha de Geraldo Alckmin era missa anunciada.

A migração de parte do seu eleitorado para a candidatura de Jair Bolsonaro tem uma explicação lógica. Ao longo dos anos os tucanos não qualificaram o sentimento antipetista dos brasileiros. Ao contrário, renderam-se ao antipetismo furibundo, tanto por meio da adoção no Congresso Nacional de uma pauta-bomba que era a negação do que o PSDB fez quando governo, como também por adotar posições mais próprias de uma extrema-direita refratária a valores democráticos. Não estranha, portanto, que entre o genérico e o original o eleitorado antipetista tenha preferido a extrema-direita autêntica.

De uma força situada no campo da esquerda democrática e de centro-esquerda, o PSDB foi em marcha batida para a direita. Reflexo disto é a campanha do seu candidato a governador de São Paulo, cujo discurso na questão da segurança é igualzinho ao de Paulo Maluf dos anos 90. E pensar que Mário Covas e Franco Montoro tanto combateram esse discurso!

A esquerdofobia passou a ser uma característica de setores expressivos do tucanato. Seu líder na Câmara, por exemplo, apresentou projeto de lei que institucionaliza o trabalho escravo e como relator da CPI da Funai pediu o indiciamento de dois mortos, num total de 120 pessoas suspeitas, entre servidores da Funai, procuradores federais, advogados da União, professores universitários, antropólogos, lideranças religiosas da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e representantes de organizações socioambientais.

O líder tucano é um político coerente: já anunciou que no segundo turno vai defender na bancada o apoio a Jair Bolsonaro. Essa guinada explica, em grande medida, atitudes de trânsfugas que aderiram -ou insinuaram adesão- ao bolsonarismo às vésperas do primeiro turno.

Se quiser sobreviver como protagonista da vida política nacional, será inescapável ao PSDB enfrentar sua dubiedade ideológica. Ou se afirma como partido de uma esquerda democrática comprometida com a democracia e o reformismo social, ou radicaliza sua opção pela direita. O pior dos mundos é tudo continuar como dantes no quartel de Abrantes e este é o xis do problema.

Em países de partidos consolidados, derrotas como a do PSDB levam à renúncia coletiva das direções e à convocação de congressos extraordinários para a definição de novos rumos.

A grande dúvida, portanto, é se é possível o PSDB renascer das próprias cinzas e voltar a sambar na avenida, como sempre foi seu papel.

Teoricamente é, mas vai ter que reescrever seu samba enredo e encontrar um  mestre-sala  capaz de  conduzir  de sua escola a bom termo.  Não será fácil, diante do massacre que sofreu nas urnas.

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Este artigo foi publicado originalmente no site do movimento Roda Democrática em  08 de outubro de 2018:

http://rodademocratica.com.br/2018/10/08/as-cinzas-do-psdb/

 

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