O inimigo comum

Por Hubert Alquéres

A história é cheia de exemplos nos quais adversários tidos como irreconciliáveis deixam suas diferenças de lado e se unem para combater o inimigo comum. O caso mais célebre foi a aliança entre Stalin e Churchill, na segunda guerra mundial. No Brasil temos o exemplo da ampla frente democrática que levou à superação da ditadura militar e permitiu o país a ingressar no mais longo período de sua história sem interrupção da democracia.

Sim, na política como na guerra é essencial saber quem é o inimigo a ser batido e qual o teatro de operações onde a principal batalha será travada. Até fevereiro, o principal palco será o Congresso, onde Bolsonaro pretende avançar em sua “guerra de posições”, ocupando mais uma instituição estratégica – no caso dominar outro poder – por meio da candidatura de Arthur Lira à presidência da Câmara de Deputados.

Se seu candidato vencer a disputa, o presidente avançará em sua pauta, abrindo a possibilidade de colocar em risco conquistas históricas, e seu projeto de índole autoritária se fortalecerá. O negacionismo e a radicalização política também poderão sair revigorados, caso o candidato de Bolsonaro alcance a vitória.

Ter um Congresso domesticado é seu sonho de consumo. Até agora, o presidente tem sido contido pela ação do Parlamento e do Poder Judiciário, que tem interposto os necessários freios e contrapesos. Dominar um desses dois poderes desequilibrará a balança, em desfavor da democracia.

O centro e a esquerda finalmente se deram conta do perigo, deixando de lado suas diferenças. Se uniram em um bloco liderado por Rodrigo Maia, cujo nome é autoexplicativo: União da Democracia e da Liberdade. É isso que os une. Os onze partidos signatários do bloco terão um candidato comum para derrotar Arthur Lira. A união não apaga suas visões diferenciadas sobre várias questões, entre elas a economia. Mas elas, no momento, são secundárias em relação ao bem comum a ser preservado: a autonomia e independência do Poder Legislativo.

A disputa na Câmara deixou de ser entre o candidato A ou B, como apropriadamente definiu a carta assinada pelos onze partidos. Passou a ser entre uma visão do Parlamento como correia de transmissão do bolsonarismo e a existência de um Legislativo forte. Textualmente: “esta é a eleição entre ser livre ou subserviente; ser fiel à democracia ou ser capacho do autoritarismo; ser parceiro da ciência ou ser conivente com o negacionismo; ser fiel aos fatos ou ser devoto de fake News”. Na presidência da Câmara, que teve papel positivo nos últimos dois anos, Rodrigo Maia correspondeu ao que o momento histórico exige, inclusive no enfrentamento da pandemia.

Não há garantias de vitória, mas a simples constituição do bloco representa um enorme avanço, particularmente da esquerda que recusou-se a uma política de frente ampla desde a eleição de Tancredo Neves. O nós contra eles, onde o centro era visto como a encarnação do mal e a esquerda o suprassumo do bem, dá lugar a uma política mais sofisticada, onde em vez de se ressaltar as diferenças, acentua-se a convergência.

É natural e previsível que, conquistado o objetivo de derrotar o candidato de Bolsonaro, os partidos de centro e de esquerda defendam seus pontos de vista sobre questões relevantes. Mas seria um desastre se dispersarem. Ganhando ou perdendo haverá a necessidade da união. A rigor, o risco para a democracia só estará definitivamente afastado em 2022, na hipótese de Jair Bolsonaro não se reeleger.

Política não comporta ingenuidade, razão pela qual não se deve alimentar ilusões de que o centro e a esquerda marcharão com uma candidatura única em 2022.  Possivelmente cada campo terá mais do que um candidato. Até porque é natural e legítimo em uma eleição de dois turnos a existência de várias candidaturas.

Mas o que a disputa pela Presidência da Câmara pode inaugurar é uma relação não beligerante entre o centro e a esquerda, capaz de aplainar o terreno para uma composição no segundo turno da disputa presidencial.  Quando ela acontecer continuará sendo decisivo ter clareza sobre o inimigo a ser derrotado. Essa é a herança que a construção da União da Democracia e da Liberdade pode deixar para o país.

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Hubert Alquéres é membro da Academia Paulista de Educação. Escreve as 4as feiras no site da revista Veja, no blog do Noblat.

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